“Os Movimentos do Coração”
Elisabeth Rochat de la Vallée
O
livro “ Os Movimentos do Coração “ é a tradução e explicação do capítulo 8 do
Lingshu, um dos dois textos, juntamente com o Suwen, que compõe o “Clássico
Interno do Imperador Amarelo “ (Huanghi Neijing). Seu título é
“Do Enraizamento
dos Espíritos” (Ben Shen).
Para
o Lingshu 8, todo tratamento vai até os espíritos, toca o espírito. Toda cura é uma transformação no
nível mais profundo do ser onde se decidem sua psicologia e a conduta da
vida.
De
que fala esse capítulo?
Das emoções.Porque?
Porque elas nos perturbam profundamente e desviam nosso espírito da razão, que não é nada além do que
a ordem natural. Elas criam uma distância entre o que nós somos e fazemos e a
maneira como nossa vida deveria proceder segundo a ordem que permite seu melhor
desenvolvimento e seu total florescimento.
O
que se passa quando somos tomados por uma emoção? Nós perdemos a cabeça e não
pensamos mais corretamente, nossas ações são inapropriadas, nossas reações
excessivas. Os gestos e atitudes de nosso corpo mudam. Os batimentos de nosso
coração se aceleram ou param. Nosso sangue flui ou para, nos tornamos brancos
ou vermelhos...etc.
Tudo
em um piscar de olhos!
Acontece
até que a emoção: cólera, medo, excitação alegre, tristeza nos faça sair de nós
mesmos, perder posse de nós, não nos sentirmos mais nós mesmos. Podemos mesmo
morrer disso!
O Lingshu 8 coloca logo no início a
questão: seria normal, natural do homem ser assim, a presa das emoções que
invadem e o dominam? Em chinês: será a culpa do Céu?Ou é porque ele não sabe conduzir sua
vida, trabalhar sua realização interior, se deixar guiar por uma luz que vem
além dele mesmo, uma inteligência espiritual?
A resposta à essa questão é uma
apresentação do que constitui uma pessoa humana com, no centro, o Coração. O
Coração é a própria pessoa. Ele reúne nele mesmo todos os aspectos do mais
material ao mais sutil. Em chinês clássico, o Coração é o órgão físico, do qual
os batimentos são sinais de vida, o impulsor do sangue que percebemos nos
pulsos e que circula em todos os cantos do corpo. Mas é ao mesmo tempo e de
maneira inseparável todo o psíquico, os afetos, o lugar onde as emoções são
sentidas e a maneira como são sentidas, é também o pensamento, o intelecto,
todas as faculdades cognitivas, a consciência e a vida espiritual.
A
faculdade que tenho de conhecimento está em meu todo, permitindo que sinta frio
e calor, dores e impressões táteis, percebendo através dos diversos órgãos dos
sentidos. É a faculdade que o Coração tem de conhecer que se desenvolve assim
em múltiplos e diversos lugares, graças ao sangue que, do Coração, corre e está
presente em toda parte.
A
forma pela qual o Coração humano conhece deve ser proveitosa para a vida. O que
compreendo deve levar a uma melhor compreensão de discernimento do que está no
sentido da vida e o que, não estando nesse sentido, se opõe a ela e à destrói.
Essa
é uma posição de base dividida entre por numerosos autores, dos quais os do
Lingshu 8.
Mas
cabe a cada um desenvolver esse discernimento, cultivar seu espírito, construir
uma inteligência espiritual. Isso implica ir o mais profundamente em si, tomar
consciência dos movimentos naturais da vida na natureza e no homem. Isso
permite uma calma, uma tranquilidade que favorece o equilíbrio do movimento e
do repouso, o equilíbrio justo das ações e reações em todas as
circunstancias inclusive quando as emoções nos assediam.
O
homem é responsável pela sua conduta, pelo modo como gerencia suas emoções sem
as recalcar mais sem se deixar levar à transbordamentos destruidores.Seu
Coração conhecendo os modelos dos movimentos vitais os integra à sua consciência
e os incorpora onde corre o sangue.
É
a definição do Coração no Lingshu 8: quando suportamos, torna-se responsável de
tudo, então é o Coração.
A
medicina chinesa é inteiramente fundada nessa visão geral do Coração e das
emoções. Ela se dá os meios de analisar e de classificar as emoções para as
integrar ao diagnóstico e ao tratamento. Ela utiliza então a teoria do yin yang
e dos Cinco elementos.
Cinco
movimentos particulares do Qi decompõem a atividade vital e permitem
analisá-lo. Em todo fenômeno, em todo ser, em toda atividade etc reconhecemos a
prevalência de um desses movimentos. Podemos dizer que o Qi de tal elemento
domina e rege a maneira de agir e de reagir.
No
homem, cinco órgãos representam os Cinco elementos como por exemplo Fígado-
madeira. O que quer dizer que o que chamamos Fígado não é simplesmente a massa
hepática, mas a atividade do Qi da madeira em tudo onde ele tem um papel na vida
humana. Assim por exemplo, é a atividade muscular, é o olho e sua capacidade de
ver longe, é a imaginação e os projetos, é a cólera. É tudo que necessita um
movimento que dá uma forte impulsão para ir para a frente e para o alto, claro
que na boa direção e segundo o ritmo justo, sem excessos.
Quando
os cinco órgãos funcionam bem, o resultado é a harmonia do Qi deles em todos os
níveis – no mental, no psíquico, na fisiologia. Esses cinco órgãos funcionam
bem pois são inspirados por um Coração iluminado. De retorno, a harmonia deles
é o Coração iluminado.
De
fato, o Coração não é simplesmente um dos cinco órgãos, associado ao Qi do
Fogo, ele é também a unidade dos cinco órgãos. Em particular no nível mental e
emocional, que é o nível que tudo comanda.
Meu
Coração, sou eu. Sou eu que experimento todas as diversas emoções e não um
órgão em si mesmo. Mas é pelo Qi desse órgão e do elemento associado, que é
possível sentir a emoção e causar as alterações corporais que acompanham a
emoção e nos fazem senti-la.
Uma
emoção que entra em mim, penetra o órgão do qual o Qi lhe corresponde, quer
dizer que a emoção aumenta indevidamente esse Qi, o faz transbordar, o torna
excessivo, muito forte, o que desequilibra o conjunto desencadeando reações
mentais e corporais específicas.
Por
exemplo, a cólera leva o Qi para cima, o corpo sobe na ponta dos dedos se
endurecendo, o sangue flui no rosto e no cérebro.... Esse movimento é da mesma
natureza do Qi da madeira, associamos então a cólera ao Fígado, mas sou eu que
o sinto. Se eu trabalhei minha inteligência espiritual, tomo conhecimento da
cólera que sobe em mim antes que ela não altere a consciência. E tomo
conhecimento do estrago que ela faz em minha vida. Tomo então as devidas
medidas imediatas para restabelecer o equilíbrio fazendo com que o Qi desça,
por exemplo com técnicas respiratórias.
Como
“Yu o Grande” tratou as águas que transbordavam, respeitando a natureza da água.
Se
o Qi retoma sua ordem natural, na harmonia de suas trocas e movimentos, nada
mais no corpo não fará sentir a emoção. Onde está a emoção? Resta uma percepção
equilibrada das circunstancias que pede uma reação apropriada, mas não
excessiva ou fora da razão. A desordem nos movimentos do Qi e do sangue tendo
desaparecidos, nenhum mal será provocado no corpo, como por exemplo ao cérebro
na cólera.
A
medicina chinesa trabalha o Qi, o guia. O diagnóstico e a percepção da ordem ou
da desordem dos Qi na pessoa. A cólera é um sinal, é também um fator de
desordem.
É
necessário abaixar o Qi que sobe muito forte e em reação particular como o do Fígado.
O
Lingshu 8 mostra como cada emoção – ou tipo de emoção- afeta o Qi de um órgão
desencadeando sintomas tanto mentais como
fisiológicos.
Ele
afirma assim que qualquer emoção leva inevitavelmente à perda da clareza da
consciência, à insensatez, à loucura, à uma morte prematura.
Não
sabendo viver, não sabendo nutrir sua vida, não cultivando em si um Coração que
permita ao homem prosperar sua natureza verdadeira que é de participar à
manutenção da vida do mundo como autêntico colaborador do Céu e da Terra. Pois
o homem é uma das três forças ativas do universo.
Xunzi capítulo 17
O
Céu possui suas estações, a Terra suas riquezas (cai財) e o homem seu governo, sua regulação (zhi治); é o que se chama: a capacidade de ser
um trio (neng can 能參). Mas se o homem
abandona o que o faz participar desse trio por querer fazer como os
outros, ele se perde (huo 惑).
As
constelações seguem seus movimentos giratórios, sol e lua brilham cada um na
sua vez, as Quatro estações alternam sua dominação, o yin yang cumprem a grande
transformação (da hua 大化), o vento e a
chuva estão em todos os lugares. Cada um dos Dez mil seres recebe a
harmonia particular (qi he 其和) que permite que
viva (yi sheng 以生), cada um recebe
o que precisa para atender suas necessidades vitais (cheng 成). Não se vê esse trabalho sendo feito,
constatamos os resultados, é o que chamamos “espírito”(shen 神).
Tudo
mundo sabe (percebe, zhi 知) que algo foi feito (cheng 成), mais ninguém conhece (percebe) o que é
sem forma (wu xing 無形); o que chamamos
Céu (tian 天) ou
o efeito celeste, o trabalho do Céu (tian gong 天功).
Zhuangzi capítulo 13
Assim
dizemos que o conhecimento da música ou Alegria (le/yue 樂) do Céu, a vida é um movimento do Céu; a
morte é uma transformação do ser; sua tranquilidade é partilha da virtude yin;
sua ativação, a forte manifestação yang.
Quem
conheceu o que é a música celeste não está exposto nem ao ressentimento do Céu,
nem às contestações dos homens, nem às dificuldades das coisas, nem às
reclamações das almas Gui.
O
adágio diz bem: Nele, a atividade é o Céu; a tranquilidade é a terra. Todo seu
coração se estabelece no repouso, ele reina sobre o mundo. As almas Gui não se
exaltam, suas almas Hun não se deprimem. Seu coração todo se estabelece no
repouso, os Dez mil seres permanecem submetidos.
Isso
quer dizer que o coração em repouso estando vazio acompanha o movimento mesmo
do Céu Terra e comunica com os Dez mil seres. Chamamos isso: música (ou Alegria (le/yue 樂) do Céu. Para ela, o coração do Santo
sustenta a vida do mundo.
Tradução
de Emilia Firmino