sábado, 13 de fevereiro de 2021

Números

 Elisabeth Rochat de la Vallée

 

Tradução : Flora Réhault

 


Um ou a unidade YI

O número Um é representado, desde os primórdios da escrita, por uma linha, um único traço horizontal -. Este corresponde ao número um, sozinho ou adicionado a outros números, como por exemplo com o dez para fazer 11. No entanto, milhares de anos antes da nossa era, o Um já possuía outros significados além do seu valor quantitativo. Ele designava então aquilo que precede ao resto ou aquilo que é único: o homem (yi ren 一人), o soberano, que não tem igual, sozinho, solitário, e que reina sobre os súditos no império. Além da soberania ser exclusiva, já que não se pode haver dois senhores, o soberano é também Um, a união e a unidade de todos os seres vivos em seu território. O Um é associado ao poder absoluto, que contém e acolhe todas as coisas. É acolhendo a todas as coisas que ele as reúne. Ele dá a cada uma delas um proposito fundamental, uma “raison d’être”.  

Os significados usuais do caráter refletem a sua riqueza: um, um só, único, uma vez, antes de tudo, cumprindo uma meta única, ser o eu de algo. Unir forças, reunir, juntar, unificar. O mesmo, igual; sempre o mesmo, constante, invariável. Puro, que não foi misturado, inalterado, e consequentemente perfeito. Completo. Cada um. Todos.

Numa forma complexa, usada para evitar a confusão e a fraude, o Um é escrito , que significa: aplicar somente para algo, unificar, idêntico, veraz. 

 

O dois ou o casal er

Dois traços horizontais juntos formam o carácter do dois : . Esta escrita não evoluiu ou mudou com tempo. O sentido do caractere também permanece inalterado: dois, segundo, secundário.  

No entanto, bastante cedo surge a ideia de que o Dois já não é o Um, de que existe uma disparidade entre eles; podendo tratar-se tanto de uma diferença como uma divergência. Também pode se referir a uma duplicidade ou uma inconsistência.

É dai que tiramos o significado usual da palavra: dois, secundário. Segundo, secundar. Duas vezes, o dobro. O par, o casal. Igual, equivalente. Dobrado; multiplicar. Dividido, diferir. Misturado, mitigado, impuro. Inconstante, ambíguo.

Apesar de um mais um ser igual a dois no sentido matemático, e de que o Dois se parece com o Um escrito duas vezes, o carácter do Dois não simboliza de jeito algum o “duas vezes um”, isto porque o Um é o todo que não pode ser dobrado ou duplicado. Deste modo, os dois traços devem ser entendido, de forma simbólica, como a abertura do Um, como a distinção em meio a unidade. Eles representam a partição necessária, sem que se rompa o vínculo que existe entre os dois elementos.

Um caractere especifico designa este casal : liang , os dois que formam um par. Antigamente, ele representava o arreio de dois cavalos, a carruagem atrelada a dois animais. O caractere é usado para se referir a coisas emparelhadas, como sapatos, ou a dois parceiros, duas pessoas em uma relação fechada, operando através de uma íntima colaboração.

Como o dois, o caractere liang pode ser harmonia ou cisão: ruptura. Assim, dois corações (liang xin 兩心) podem ser dois irmãos, duas pessoas unidas por um forte vínculo emocional e afetuoso, e por uma grande afinidade; ou pode ser um coração repleto de duplicidade.

O dois, numa escrita complexa, é , ajudar, apoiar, auxiliar. Duvidar, hesitar. 

 

O três ou a tríade, san

Os três traços horizontais que formam o caractere são a simples representação do três como um número ou da terceira posição numa sequência.

No entanto, desde as inscrições oraculares (circa 1400 a.c), este caractere tem designado um grupo de três, pessoas ou espíritos, como por exemplo três espíritos ancestrais ou três influentes dignitários próximos do rei.

Este caractere evoca a tríade. Simbolicamente no caractere três, ,  há duas aberturas que permitem que o fruto do casal surja no meio. Isto representa a sua união. Três não é “três vezes um”, mas sim o Três que faz o Um, considerando assim a unidade em seu aspecto tríptico.

É dai que tiramos o significado usual da palavra : três, terceiro, triplo, tríade. Vários.

O três representa o fruto do casal e a sua compenetração. Ele representa todas as combinações possíveis do yin e do yang, sendo, portanto o número de qì do qual surgem as dez mil coisas. O três é o Um múltiplo.

O três, numa escrita complexa, é : a tríade, um caractere que significa participar, misturar, formar uma harmonia triplica.

 

 O quatro ou a partição , si

Nas inscrições oraculares, além do seu valor quantitativo (quatro, o quarto) o número quatro é também associado desde o começo com uma divisão fundamental : a divisão do espaço sob a autoridade do rei. Na terra, o poder do monarca parte do centro e se propaga sobre os quatro grandes territórios, que se estendem nas quatro direções e formam o reino – assim como no céu, o grande ancestral, o poder supremo, dirige os quatro espíritos que protegem a vida na terra em cada um desses quatro grandes territórios. Esses espíritos se manifestam por meio dos quatro ventos.

Apesar de o quatro ter sido escrito por séculos com quatro traços sobrepostos, seguindo o modelo do dois e do três, a escrita clássica do quatro inclui a divisão , dentro do círculo que se torna um quadrado . Isto é o que permite que hajam subdivisões, tal como os oito pontos da rosa-dos-ventos. É dai que tiramos o significado simbólico do quatro, que é o protótipo para todas as distinções e que faz com se destaquem certos instantes no tempo e áreas específicas no espaço. É também a partir disto que entendemos a potencialidade desses instantes no tempo e dessas áreas específicas no espaço.

 

Os quatro territórios (si fang 四方 )são todas as direções do espaço, como as quatro estações (si shi 四時 ) são o modelo para todos os momentos da vida. O mesmo caractere é usado para a estação, a hora, ou qualquer outro momento determinado pela temporalidade (shi ). Do mesmo jeito, um só caractere é usado para o quadrado, o território, o lugar, o posicionamento (fang ).

Numa escrita complexa, o quatro é : espalhar, exibir, organizar.

 

 O cinco ou a centralização wu

Desde os primórdios até o século III a.C, a escrita do número cinco era uma cruz, um cruzamento, muitas vezes enquadrada por dois traços . Com o tempo, a escrita clássica foi instituída.

Nas inscrições oraculares, grupos de cinco são ofertados como sacrifício a u grupo de cinco espíritos ancestrais (uma outra interpretação), cinco rituais são realizados ao longo do ano. Até hoje, conjuntos importantes são formados a partir do agrupamento de cinco elementos : gostos, sons, cores, planetas..., antes de se tornar, um pouco antes da era cristã, a base das correspondências universais que fundam a cosmologia dos cinco elementos (wu xing 五行 )

Assim, o cinco é o número da organização centralizada da vida, da “repartição” (divisão e distribuição) e da relação harmoniosa entre os cinco movimentos do qi que estão por trás de cada ser vivo e fenômeno. É o número de elementos nos conjuntos que seguem o modelo dos cinco elementos, e do centro. O cinco regula as permutas e associações de todo qi, organizadas a partir das suas cinco características inscritas.

A escrita complexa do cinco é : um esquadrão de cinco homens, um conjunto de cinco lares.

 

Seis ou o fluxo organizado, liu

A escrita arcaica do seis sugere o fechamento : o teto, a cobertura, o interior, a residência. Ela passou a ser entendida como a entrada, a penetração, que são as qualidades específicas do yin.

O seis tem como missão aplicar o princípio de organização iniciada pelo cinco. Se trata do número par excellence daquilo que cria repartições (divisão e distribuição) : a repartição do yin, do yang e do qi em três pares, que por meio de suas trocas formam o universo como o conhecemos, na junção entre o dinamismo celeste e a submissão terrestre. A divisão dos serviços do governo e da administração é baseada no modelo dos seis ministérios. As seis linhas contínuas ou quebradas do hexagrama representam os entrelaçamentos do yin, yang qi que provocam os acontecimentos da vida.

 

O seis é o fluxo e o refluxo que anima o qi, que por meio das suas trocas funda e preserva todos os espaços nos quais se desenvolve a vida.

O Seis é, portanto o número fundamental que organiza a grande animação. Se trata, quanto aos fenômenos naturais dos seis tipos de espíritos que sacrificamos nos seis altares ancestrais. Na terra, são os rios e os canais. Analogicamente, há no corpo humano doze meridianos que regulam a circulação vital. No curso do ano, há um ciclo de 60 dias ou de 60 anos.

Numa escrita complexa, o seis é : a terra firme, o continente, o caminho terrestre (como a estrada). 

 

O sete ou a emergência qi

A escrita arcaica do número sete lembra uma cruz cujo traço horizontal é frequentemente encurtado. Podemos então identificar um traço vertical em ascensão que cruza ou corta o traço horizontal de menor importância. Isso ilustra a emergência, a aparição do yang, o broto que germinando chega ao mundo.

Perto do final do século III a.C, o traço vertical que antes era reto passa a curvar-se na parte de baixo, obtendo assim o caractere clássico do sete, .

O sete simboliza a aparição concreta da força vital, o impulso vital com seus perigos e excessos. Todo crescimento implica um potencial fracasso. É preciso dominar esta força que tenta emergir para que não se torne uma violência incontrolada. Sete, qi, é o único número (além do cem) que se pronuncia de forma aspirada.

O sete é a confiança, o jorro efusivo. É o surgimento de uma inspiração secreta. O Yin yang e os cinco elementos formam o poder, e tem que manter uma ordem interior para evitar a desordem e o desastre. Existem sete orifícios superiores (ou yang claros), sete emoções, sete almas Po representando o surgimento da vida tanto no aspecto mental quanto corpóreo.

Numa escrita complexa, o sete é  a árvore da laca.

 

O oito ou a repartição ba

Desde sempre, a separação em duas partes que permite que sejam feitas outras repartições (divisão e distribuição), é associada ao oito. Sua escrita clássica se assemelha ao dois , na medida em que discernimos uma divisão daquilo que era o Um. O oito é a divisão, a repartição e a divisibilidade.

O oito é responsável pelas manifestações e difusões do qi e dos espíritos vitais, aquilo que surge do oito é onipresente, ocupa a totalidade do espaço e do tempo.

O oito separa e distingue o qi. Ele traça limites à sua expansão. Porque é o dobro de quatro, o oito afirma a especificidade do qi vital. Ele estabelece as regras fundamentais. Alguns exemplos das variações do qi vital com o oito são : os oito trigramas, os oito ventos, os oito meridianos extraordinários.

Numa escrita complexa, o oito é : rasgar, separar, dividir.  

 

O nove ou a conquista jiu

O nove é quando se chega à uma conclusão. Tudo foi planejado, organizado, realizado. Em nove meses, a semente plantada na terra germinou e agora é a planta pronta para ser colhida. Ela amadureceu usando todos os recursos que suas raízes podiam oferecer, e nada pode fazê-la crescer mais ou aliviar o peso de suas reservas. O nove é o numéro que expressa o desabrochar absoluto, a maior expressão do yang, mas também a exaustão, o envelhecer.

Existem diversas versões da sua escrita, que variam segundo o significado atribuído. Podemos ver o murchar ou o desenrolar da planta. As escritas mais antigas mostram um gancho, uma curva.

Além do seu sentido numérico, o caractere do nove, jiu , é também usado para significar um grande contingente que forma um todo, um agrupamento de varias coisas. Sua homofonia com o caractere jiu : “aquilo que durou por muito tempo”, “velho”, as vezes faz com que soe como “velho". Porque o encontramos em diversos caracteres, ele parece reuni-los. Isto também se aplica a jiu , a tartaruga pombo, o caractere formado pelo passaro () e o nove (), e que também significa unir, reunir, agrupar. Também o caractere kui que significa junção no ponto de encontro entre as nove vias.

Na escrita complexa, o nove é : o quartzo preto.

 

O dez ou a unidade recomposta shi

A escrita primitiva do numéro dez é uma linha vertical. Com o passar do tempo, o broto ou o pequeno traço horizontal foi incluído, provavelmente para evitar que se confunda a ligna com uma mancha causada pelo utensílio de escrita.

O valor quantitativo parece ter prevalecido por séculos. Mesmo que o traço vertical possa evocar o céu, ou o movimento entre o céu e a terra, o aspecto simbólico dessas noções desenvolveu-se progressivamente.

A cruz, designada pelo caractere classico do dez , pode ser entendida como a interseção entre a linha do norte/Oeste e a ligna do Este/oeste. As quatro direções e o centro estão assim representadas. É a totalidade daquilo que é expressado na terra, o arranjo perfeito.

No entanto, a verticalidade é facilmente associada ao céu, e a horizontalidade à terra. Se considerarmos que o cruzamento da ligna vertical com a horizontal, a escrita clássica do dez pode ser facilmente interpretada como tudo daquilo que desce do céu e e aquilo que se espalha sob a terra, como a totalidade do céu-terra. O dez adquire assim um outro significado, de um todo completo e perfeito, à imagem do céu-terra.

O dez também inscreve todos os elementos distintos que compoem a vida na unidade. É também o numéro do homem, um entre vários e expressa a unidade da vida cósmica.

Numa escrita complexa, o dez é : reunir, agrupar, organizar.

 

 


ZHUANGZI ch. 5 - Trad. Jean Lévi

  O Tao deu-lhe a sua aparência e o céu a sua forma, porque deixaria que as paixões prejudiquem o seu corpo? Você se deixa distrair pelo mu...