quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O PENSAMENTO OBSESSIVO 思 SI




O PENSAMENTO,
FUNCIONAMENTO NORMAL DO ESPÍRITO HUMANO*
Elisabeth Rochat de la Vallée

O caracter que se traduz de bom grado por “obsessão” quando se está na patologia das emoções é também aquele que pode designar o pensamento em suas atividades mais nobres.
O pensamento e a reflexão são bons, quando eles estão no estreito fio do savoir-faire; nada escapa então à grandeza do espírito do homem:

“Quando o pensamento e a reflexão (si lü 思慮) do homem santo estão em função do savoir-faire (sagesse, zhi ), não há nada que não esteja ao alcance de seu conhecimento.” (Guanzi, cap. 64 Xingshijie )

O Coração sob a caixa craniana abrigando o cérebro, juntos, forma o caracter si : Pensamento – concepção – refletir – considerar – lembrar – obsessão – preocupação – suspirar por. A boa relação do Coração – e dos espíritos que nele residem – com o cérebro permite o desenvolvimento do pensamento. Uma relação ruim, uma perturbação do Coração proveniente dele próprio ou não, alteram o desenrolar normal do pensamento e o perverte em preocupação e obsessão.
O Lingshu, cap. 10 ressalta nitidamente a ligação direta entre o Coração e o cérebro; esta conexão pode passar pela língua e olho. O meridiano do Coração, Shaoyin da mão,

“a partir do sistema do Coração (xin xi 心系), enquadra a faringe e vai se conectar (xi ) ao sistema que liga o olho ao cérebro (mu xi 目系).

E o trajeto de ligação (o luo ),“segue o meridiano, penetra no centro do Coração e se conecta (xi ) à raiz da língua; ele faz obediência (se coloca sob a dependência de, shu ) ao sistema que liga o olho (ao cérebro, mu xi 目系).”

O Coração permite a fidelidade interior e, o cérebro, o bom funcionamento dos orifícios de comunicação com o exterior. A medula do cérebro é constituída por essências refinadas e sutis que manifestam a potência original e oculta dos Rins nas alturas irradiantes do corpo, onde elas têm a capacidade de acolher os influxos espirituais.
A boa relação do Coração, e dos Espíritos que nele residem, com o cérebro permite o desenvolvimento do pensamento. São necessárias a presença dos espíritos e a potência das essências mais sutis e puras na extremidade mais alta do indivíduo, em contato com os influxos que descem do Céu, para assegurar a mais nobre função do ser humano: o pensamento que caracteriza a espécie.
O pensamento permite apreender os elementos do raciocínio ou da consideração ao encadeá-los numa linha definida. Atinge o âmago das realidades apresentadas com acuidade e penetração, de modo a possibilitar a compreensão dos fatos a qual, por sua vez, leva à conjectura e à planificação.
O pensamento desconhece a hesitação, mas permanece na consideração. O tema é examinado e reexaminado; percebem-se melhor as questões colocadas; mas não se questiona o princípio, pois sabemos o que queremos e para onde tendemos, antes de reconhecer todos os pormoneres.
O início do Livro da História (Shujing) atribui ao imperador mítico Yao quatro grandes virtudes; saber pensar é uma delas:
“Yao revela uma vigilância assídua, uma inteligência penetrante, uma exímia distinção, um pensamento prudente; naturalmente e sem esforço.”
Mas se o indivíduo não sabe parar seu pensamento quando ele atinge seu objetivo, se ocupa o seu espírito com um esforço incessante de pensamento, se chega a considerar que não se preocupar é ser muito despreocupado, então o pensamento obscurece e desvia a razão; seu uso desregrado desgasta a vitalidade.
O Suwen repete o que dizem todos os livros de sabedoria:
“Ao exterior, eles (os Sábios) não sobrecarregavam seus corpos de afazeres. Ao interior, eles não se atormentavam com preocupações (si xiang 思想). A alegre serenidade era o que eles buscavam. Eles se ocupavam da plena possessão deles próprios.” (Suwen, ch. 1)
Nos textos médicos, o pensamento, antes de se pervetir, é igualmente apresentado como uma das grandes funções do espírito humano:

“Quando a vontade que se mantém se modifica, falamos em pensamento.” (Lingshu 8)

Longe de ser um paradoxo, descreve-se o processo que forma o pensamento:
“O conjunto formado pelo propósito e a vontade (a disposição interior, yi zhi 意志), estando-se fixado, vira e revira os dados, calculando, supondo, medindo; é então o pensamento.”(Zhang Jiebin)

Buscam-se todas as possibilidades de mutações e de alterações, porém sem vacilar, sem que a ancoragem, a orientação, a direção e o propósito, uma vez escolhidos, sejam questionados. Avalia-se e calcula-se sobre bases seguras e estáveis, à procura da eficácia. As facetas de um projeto inicial, de uma inspiração ou de uma idéia, são inspecionadas, mas não se deve brincar com um projeto, com um pensamento. Não conseguir deter-se numa idéia é patológico, na mesma medida em que é patológico não conseguir jamais mudar nada, quando uma nova era se anuncia ou quando as circunstâncias mudaram.

O PENSAMENTO, MOVIMENTO DO BAÇO-TERRA

Movimento Normal

O pensamento é apresentado aqui como a faculdade de conceber e combinar os planos com sabedoria e analisar as circunstâncias com profundidade. Ele é fundamentado sobre a memória das percepções e dos conhecimentos, das experiências e das cogitações. Ele é o processo pelo qual todos estes elementos se ligam e se combinam.
Estas atividades sobressaem do elemento Terra: a Terra recebe as sementes, amadurece-as e dá a cada uma o que lhe é apropriado. A Terra permite a mistura e a comunicação do que vem para seu seio; assim a água pode nutrir a vegetação e se transformar em seiva... O pensamento, baseando-se em toda a memória, permite as permutações, as compenetrações e colocar em relação, o que conduz à tomada de forma.
O pensamento é então associado ao Baço, que encarna a Terra no ser humano:

“A Terra [....]  Nos zang, é o Baço [....]  Nas vontades, é o pensamento   (si ).” (Suwen  5)

Des regramento

“O pensamento obsessivo (si ) prejudica o Baço, a cólera o arrebata no pensamento obsessivo.” (Suwen 5)

Quando os movimentos de sopros – análogos aos do Baço-terra – que elaboram o pensamento não são corretamente regulados, então o pensamento se transforma em preocupação, inquietação, tormento, obsessão. Este pensamento obsessivo poderá tomar diversas cores e ser inquieto ou ansiosamente agitado, desanimado ou alarmado; poderá gerar obstáculos e paralisar o pensamento ou o transformar em máquina louca e repetitiva.
A repetição que pode ir até a compulsão, marca bem a deterioração do Baço. No lugar de circular e de evoluir, de ser transportado e transformado, o pensamento estagna no lugar, atola na umidade, como viajantes mal equipados na floresta. No lugar de avançar, anda-se em círculos. Os sopros que já não conseguem circular, se bloqueiam e fazem nós:

“Quando há pensamento obsessivo, o Coração tem onde morar (constantemente e obsessivamente), os espíritos têm onde se referir (sem parar e sem evolução); os sopros corretos (zheng qi 正氣 ) permanecem no lugar e não circulam. É assim que os sopros são amarrados (jie ).” (Suwen  39)

Fica-se preso na mesma imagem, na mesma idéia; fica-se preso na mesma coisa, incapaz de se liberar de um pensamento que ocupa todo o mental e mobiliza todas as forças.
O Coração está implicado, pois ele é a sede de todas as emoções e o lugar do pensamento.
Como o pensamento é uma “emoção”,é pouco habitual no Ocidente, tratar o pensamento como uma emoção. Sem querer retomar aqui a definição das emoções ou a análise da noção em Chinês, dirá-se simplesmente que o pensamento é um movimento específico de sopros no interior do mental, naquilo que constitui a trama e a substância da vida interior, naquilo que marca as tendências que vão determinar as reações e as ações da vida. Neste sentido, é uma emoção. Sua normalidade é o equilíbrio com os outros movimentos de sopros. Sua patologia desequilibra o todo por excesso.
Quando as atividades do pensamento, visto como as atividades dos sopros do Baço-Terra ao interior do metal, do Coração, são excessivas, elas levam ao bloqueio.
Um exemplo de desequilíbrio pode ser a má relação entre a Terra e a Madeira, o Baço e o Fígado, o pensamento que cria ligações e a potência da imaginação e da cognição.

A REFLEXÃO OU PROJETO, MOVIMENTO DO FÍGADO-MADEIRA
Uma noção se encontra muito regularmente associada àquela do pensamento que pode voltar à obsessão. No Lingshu cap. 8, é a etapa que segue o pensamento (si ) na elaboração do mental e da consciência:

“Que o pensamento se desdobre ao longe e com força falar-se-á de reflexão ( ).”
O pensamento (si ) é então concebido mais como voltado para o que já foi adquirido, conhecido, como um aspecto yin de ligação e consolidação. É necessário então adicionar-lhe seu aspecto yang complementar que trabalha mais sobre o imaginário, a invenção, a projeção no futuro, para que o pensamento seja completo e sirva para guiar a vida através das circunstâncias sempre mutáveis.
“Quando o pensamento, que se modificava e buscava, se inverte e se dirige para longe em direção ao futuro, temos a reflexão.” (Taisu)

A expressão si lü 思慮 significa: refletir intensamente (uma reflexão que normalmente chega a uma decisão); solicitude, estar preocupado; pensamentos obsessivos e preocupações. São os mesmos caracteres que, considerados positivamente, correspondem ao que entendemos por "pensamento e reflexão", e que, considerados negativamente, são a inquietação pungente, as preocupações, os aborrecimentos, a preocupação obsessiva.
Para transformar-se em projeto, o pensamento precisa, além de uma consideração ampla e profunda e de uma grande envergadura, do enraizamento ter permanecido sólido e o vínculo, firme no Coração.
Esta projeção reflete os sopros da Madeira, que dão o impulso necessário para ir adiante, até o fim. A reflexão reflete a capacidade do Fígado de gerir o mental, a inteligência, capacidade que faz dele a morada das almas Hun.
A reflexão pertence ao Fígado, como o pensamento pertence ao Baço. O simples pensamento reflete sobre elementos já vivenciados; aprendem-se as lições da experiência, medita-se, e, precisamente falando, cogita-se. Tira-se do húmus do já visto, já vivido, o fruto de experiências aprendidas e assimiladas. É o papel do Baço, que digere, assimila e transporta até as extremidades para nutrir.
A reflexão projeta em direção ao futuro, a fim de realizar o que ainda não ocorreu. Ela imagina, a partir do real. Ela é capaz de analisar os elementos do pensamento para ver o que pode ser concebido e realizado, permanecendo na realidade dos fatos e fiel à sua natureza própria.

“O Fígado tem o cargo de comandante dos exércitos (jiang jun 將軍), análise de conjuntura e concepção de planos (mou lü 謀慮) procedem.” (Suwen  8)

Como um general, o Fígado deve meditar e refletir longamente, para estabelecer um plano de batalha inteligente e sensato, livre das paixões, no qual a imaginação e a cogitação próprias aos Hun seguem fielmente a inspiração dos espíritos, a fim de garantir uma eficácia máxima.
O caracter da reflexão, , ilustra bem o que ela é. Ele é formado das listras do tigre envolvendo o pensamento  . significa: Projeto - concepção de planos - meditação - refletir - considerar atentamente - conjecturar - avaliar - premeditar - zelar - ter cautela - solicitude - preocupação - dúvida - incerteza.
O tigre salta poderosamente e longe, cai no lugar exato e detém sua presa no solo, imobilizando-a. O mesmo tigre permanence imóvel, até no olhar que vigia sem piscar, horas a fio. Ele espera. As listras revelam sua natureza. O repouso concentrado e o desencadeamento de um movimento calculado são os dois aspectos da mesma virtude; dois aspectos que se destacam no desenho regular de alternância da cor sobre uma pelagem fina e abundante.
As listras do tigre acrescentam ao pensamento uma consideração atenta, por vezes mesmo uma preocupação, mas que permite ao espírito arriscar-se, avaliar suas estimativas e planejar com conhecimento de causa.
Não há diferença entre a reflexão e o projeto, a concepção dos planos. O Fígado impulsiona longe e com impetuosidade, vai em frente, dá o impulso e o ímpeto: nada vai mais longe e em menos tempo do que o olhar. E nós sabemos que o olhar é o irromper do Fígado, através do orifício ocular.
Da mesma maneira que o Fígado-Madeira ajuda à expansão do Baço-Terra para que as circulações se realizem bem e que tudo seja distribuído sem obstrução, eis aqui o pensamento que se realiza através da reflexão, que o leva para longe ao mesmo tempo em que lhe aumenta a potência.
Deve-se em seguida tomar uma decisão e manter-se a ela firmemente, sem mais se preocupar em reconsiderar os incovenientes e as vantagens de cada plano possível. Isto seria análogo a uma obstrução do Fígado-Madeira pelo Baço-Terra, o que é também o ciclo de contra-dominação dos Cinco elementos.

“O Fígado é o general do Centro; sua decisão (jue ) vem da Vesícula Biliar; e a faringe é seu menssageiro. Um homem pode ter múltiplas análises de conjuntura e númerosas concepções de planos (mou lü 謀慮), mas, se há um vazio na Vesícula Biliar, ele não toma decisão (bu jue 不決 ).” (Suwen  47)
O vazio da Vesícula Biliar, dinamismo yang da Madeira, enfraquece a determinação e impede a passagem à ação. Não mais é a obsessão fixa sobre um único pensamento; é a multiplicação desordenada dos pensamentos. Não mais se teme morrer afogado; imaginam-se mil mortes; não mais se considera uma dificuldade, inventam-se dez mil. Mas sem concluir em nada. O delírio da perseguição e a paranóia não estão longe.

A OBSESSÃO DO DESEJO

Ter uma idéia fixa não é necessariamente um pensamento obsessivo, isto pode ser um desejo. O melhor exemplo ainda é a obsessão sexual:
“O pensamento carregado de preocupação (si xiang 思想) pratica indefinidamente, sem que se chegue a obter o que se aspira; o propósito (yi ) se distribui sem controle ao exterior; pratica-se intensamente o quarto de deitar (atividades sexuais); então o músculo ancestral (zong jin 宗筋 ) se afrouxa até o completo relaxamento.E se produz impotências no muscular (jin wei 筋痿), até causar escoamentos incontrolados da substância branca.” (Suwen  44)
O desejo não logra ser satisfeito, seja por não ser realizado, seja por que se quer sempre mais. A pessoa perde o controle de seus pensamentos e desejos, que são imantados para o exterior; o que impede de voltar a si. O desregramento da conduta se traduz por uma sexualidade desenfreada que desgasta as essências e os sopros e prejudica os Rins.
Entretanto o bloqueio resultante da obsessão agitada gera um calor reativo: o fogo do desejo. Este fogo contribui para a deterioração das essências e dos sopros. O sangue enfraquecido já não dá força e vigor aos movimentos musculares, o que se traduz em particular por uma falha de ereção (relaxamento do músculo ancestral) e em geral por paralisias flácidas devido à falta de irrigação e de força nos músculos (impotência do muscular). Empurradas para fora do corpo pelo fogo interno, ou se escoando devido à falta de sopros para as reterem, as essências se perdem, por exemplo, em espermatorréia (escoamentos incontrolados da substância branca).

PENSAMENTOS OBSESSIVOS E PREOCUPAÇÃO ESVAZIAM O CORAÇÃO

O Coração já não consegue manter as circulações vitais
O Coração pulsa o sangue no corpo. Tudo o que bloqueia ou enfraquece os sopros capazes de dar este impulso esgota o Coração e atrapalha suas comunicações.

“Sob o efeito da opressão e do pesar, dos pensamentos obsessivos e preocupações (you chou si lü 憂愁思慮 ), o Coração é prejudicado.” (Suwen 73)

“Em caso de preocupação e de opressão (si you 思憂), o conjunto das conexões do Coração (xin xi 心系 ) aperta-se (ji ); estando assim apertado, o caminho dos sopros ficam estreitados (yue ); estando estreitados, já não há fluidez.” (Lingshu 28)

Os pensamentos (si ) obsessivos e o pesar (you ) se aliam para impedir as ciruculações do sangue e as comunicações do Coração com todo o corpo, em particular os órgãos. Ver adiante o estudo do pesar opressivo (you ).

Entre Baço e Coração
“ [...] diagnostica-se um acúmulo de sopros no centro. Tem-se frequentemente danos ligados à alimentação. O nome é Bloqueio do Coração (xin bi 心痹). Contrai-se este mal através de danos exteriores, pois os perversos exteriores beneficiam-se do vazio do Coração causado por pensamentos obsessivos e preocupações (si lü 思慮).” (Suwen 10)

Os recursos do Coração são mobilizados pelos pensamentos obsessivos, e a capacidade dos seus sopros enfraquece. Os sopros do Coração e do peito são solidários dos sopros yang que asseguram a defesa do organismo; quando estes últimos estão diminuídos, as agressões dos perversos externos são mais fáceis e mais virulentas, o que agrava a situação e enfraquece ainda mais os sopros que já não são capazes de assegurar as boas circulações. Estes se acumulam no peito e bloqueiam o Aquecedor Médio; são os bloqueios (bi ) do Coração. O Coração gasta seus recursos e suas forças re-considerando pensamentos obsessivos e pesarosos.
Em termos de ciclo de geração, dirá-se que o fogo do Coração, tornado impotente, não mais consegue vivificar o Baço, do qual o yang se encontra muito fraco para assegurar distribuições e transmissões. De onde vem o bloqueio sobre a alimentação, um freio particularmente aos movimentos de descida assegurados pelo Estômago. Come-se menos, digere-se mal... O enfraquecimento do Baço agrava a obstrução causada por pensamentos parasitas e repetitivos.

“Quando o Coração é acometido pela apreensão e pela ansiedade (chu ti 怵惕), pelos pensamentos obsessivos e pelas preocupações (si lü 思慮), os espíritos (shen ) ficam prejudicados. Prejudicados os espíritos, sob o efeito do medo e do temor (kong ju 恐懼), o indivíduo perde a posse de si mesmo; as formas arredondadas se descarnam e a massa da carne fica devastada.” (Lingshu  8)

Aqui já não se trata de um pensamento justo, que se desdobra com força ao longe em uma reflexão apropriada, capaz de organizar todos os elementos de uma situação ou de um ser, do meu ser. A apreensão e a ansiedade, instaladas nas profundezas do Coração, o tornam incapaz. Neste estado, os pensamentos e reflexões, que deveriam nos aclarar, estão desequilibrados, agravando a situação. Espada de dois gumes, pensamento e reflexão, mal conduzidos, se voltam contra aquele que os abriga, prejudicando os espíritos do Coração. O indivíduo se faz mal por seus próprios pensamentos, se tormenta por uma caricatura de sua reflexão. Ele aumenta a falta de posse de si mesmo, através do mau uso.
O Baço está enfraquecido, vazio daquilo que deveria vivificá-lo: o Coração que é o Fogo. É a força de expansão do Fogo que sustenta o movimento de distribuição dos nutrientes nas espessuras da carne, movimento da Terra, próprio ao Baço. Em caso de fraqueza deste Fogo, o Baço já não tem força nem para distribuir, nem mesmo para transformar, isto é, assimilar as essências nutritivas liberadas pela digestão.
O Baço é atacado pelo que ele deveria dominar: os Rins que são a Água. O Baço, pela sua capacidade de transformar e integrar a umidade do corpo tempera e equilibra os líquidos, a água do corpo, sob obediência dos Rins. Se o Baço, mal vivificado, perde sua aptidão de transformar, metabolizar, assimilar e transportar, distribuir; então os líquidos, a Água, se voltam contra ele, o inundam, o perturbam, o enfraquecem ainda mais o obstruindo com umidade. Em conseqüência, a força yang dos Rins, os sopros, que são encarregados de reter e transformar os líquidos no nível dos Rins, também diminuem.
A destruição da forma corporal, visível no emagrecimento, é consequente ao desperdício da vitalidade e à perda, pelo escoamento, das essências (do Baço e dos Rins) incapazes de regenerar e nutrir as carnes.

Um Coração livre para pensar
Ter no Coração, uma idéia, um pensamento, um objeto de solicitude é próprio ao homem. Mas fazer do pensamento uma preocupação e um pensamento obsessivo, uma obsessão que corrói e consome, é uma perversão; seria melhor um Coração vazio. O Santo não tem preocupação nem obsessão, ele se mantém na vacuidade e na pura serenidade; ele não deixa murmurar nem proliferar idéias e reflexões.
Não se é nunca mais profundamente pervertido que pelo que tem uma ligação natural consigo. O Coração, lugar do pensamento, será danificado e perturbado pelos pensamentos. Perturba-se e usa-se o Coração através de pensamentos obsessivos e preocupações, por um mau uso das suas capacidades de pensar e sentir; o que o entrega, chegado o momento, à agressão dos perversos exteriores.
Um Coração invulnerável é um Coração vazio. Pois o Coração não está aí simplesmente para permitir a germinação dos pensamentos, ele é o que permite ao homem se dilatar nas dimensões Céu/Terra; nenhum pensamento obsessivo deve retê-lo nem diminui-lo; nenhum pensamento deve ocupá-lo em detrimento de sua visão e de sua Inteligência espiritual.

PENSAMENTO E SANGUE
O Baço nutre o Coração e lhe permite assim elaborar tanto o sangue quanto o pensamento. Diz–se às vezes que o pensamento vem do Baço, mas se forma no Coração. É o mesmo para o sangue.
Pensamentos obsessivos, inquietações e preocupações trazem ou denotam um mau funcionamento dos sopros do Baço. O Baço se torna incapaz de nutrir corretamente o Coração.
Os sopros do Baço já não conseguem estabelecer as ligações, manter a memória, receber as informações e tratá-las. As idéias e imagens não se apresentam mais ao Coração em uma forma justa e frutífera.
Se o Baço não consegue fornecer líquidos suficientemente ricos, o sangue será muito pobre para permitir a presença dos espíritos, da consciência. As essências serão insuficientes para formar espíritos vitais (jing shen 精神) fortes. Ao lado dos sintomas consequentes ao empobrecimento do sangue, tem-se problemas mentais.
O vazio de sangue do Coração pode dar atordoamento, vertigens e problemas da visão, palpitações com uma sensação de mal estar e de calor. A falta de expressão dos espíritos se traduz então em afobamento, confusão, aturdimento.
A insuficiência dos espíritos do Coração traz agitação, apreensão, ansiedade, falta de discernimento; mas também problemas do sono, insônia, pesadelos.
O duplo dano de Coração e Baço se manifesta por esquecimentos, perdas de memória; perdem-se as coisas; falando, trocamos uma palavra por outra, torna-se incoerente... Fleuma pode se formar no peito, nas proteções do Coração, e obstruir os orifícios do Coração, levando assim à loucura.





Tradução :Andrea Jacusiel

* Extraído da apostila 'As Emoções', editada pela E.E.A.
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sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A Alacridade e a Alegria – 喜 樂 - XI LE


ALACRIDADE - XI 喜*

Alacridade e a cólera (xi nu 喜怒 )

A alacridade é tradicionalmente colocada pareada com a cólera:

“O homem experiencia uma alegria excessiva (da xi 大喜), ele danifica em si o yang. Experiencia uma violenta cólera (da nu 大怒 ), ele danifica em si o yin. Quando yin e yang estão os dois danificados, as Quatro estações já não chegam (em seu tempo), a composição harmoniosa do frio e do calor já não se realiza, o que por sua vez irá prejudicar o corpo (xing ) deste homem. Isto faz com que a alegria e a cólera, no homem, percam o seu lugar (shi wei 失位); faz com que ele seja constantemente sacudido de um lugar a outro, que seus pensamentos e projetos não cheguem a lugar algum ...”. (Zhuangzi 11)

A alacridade e a cólera representam dois movimentos opostos, pois a alacridade refresca e a cólera aquece. Estas duas emoções são então próprias para desorganizar a harmonia yin yang do sopro no indivíduo.  Como o homem participa dos sopros do cosmos, sua desordem é a desordem da natureza: as Quatro estações estão desorganizadas, elas que representam o modelo de alternância e da composição harmoniosa do yin e do yang. A desordem das Quatro estações, no indivíduo, é a desordem dos seus sopros, a má composição e a má alternância do yin e do yang no seu organismo e no seu mental.
Este par é retomado nos textos médicos, onde ela pode representar os desequilíbrios induzidos pelas emoções má geridas, ao lado dos males causados pelos perversos exteriores (calor e frio) ou de outras causas como o mau uso da sexualidade:

“Assim então, o 'savoir-faire' é a manutenção da vida.
Não deixar de observar as quatro estações e de adaptar-se ao frio e ao calor,
harmonizar alacridade e cólera e estar tranquilo no repouso assim como nas ações, regular o yin/yang e equilibrar o duro e o mole.
Deste modo, evitada a chegada dos perversos, haverá vida longa e visão duradoura. ”(Lingshu 8)

Alguém que, na sua constituição, tem um domínio do yin ou do yang, terá no seu temperamento, nas suas reações espontâneas, tendência à alacridade ou à cólera, a estar exaltado e vivo ou a estar nervoso e irritado:

“Muito yang, é muita alacridade. Muito yin, é muita cólera.” (Lingshu 67)

O yin é colocado aqui em relação com a cólera, pois se trata de um bloqueio que desencadeia a reação de cólera; enquanto que o yang é uma expansão plena de vivacidade.
Este par da alacridade e cólera representa também todas as desordens emocionais, pois estas duas emoções atacam o yin e o yang, o sangue o os sopros, tudo o que nutre, umidifica e irriga ou tudo o que anima, aquece e transforma.

“O Céu tem Quatro estações e Cinco elementos para produzir, fazer crescer, recolher e tesourizar, para produzir o frio, o calor, o seco, o úmido e o vento. O homem tem Cinco zang e, por transformações, Cinco sopros, para produzir alacridade, cólera, tristeza, pesar e medo. Assim então alacridade e cólera prejudicam os sopros, frio e calor prejudicam o corpo. Cóleras violentas prejudicam o yin, alacridades violentas prejudicam o yang. Os sopros em refluxo sobem, entopem as circulações vitais (mai) das quais a vitalidade deixa o corpo. Se alacridade e cólera não são regulados, se frio e calor são excessivos (intempestivos), a vida não mais é sólida.” (Suwen 5)

No par alacridade e cólera, estamos na presença de duas emoções “yang”, pois elas correspondem aos elementos ((Madeira e Fogo) associados às estações yang (primavera e verão) e aos zang ditos “masculinos” (Fígado e Coração). Tem-se então um par yin yang, no interior do yang. A alacridade não representa o yin nas emoções, mas unicamente no interior das emoções que são caracterizadas por um movimento yang dos sopros.
Compreende-se bem como a cólera prejudica o yin, ela que apressa os sopros em direção ao alto com violência, em um movimento yang incontrolado, que esvazia o baixo e que danifica o sangue e os líquidos. Compreende-se com menos facilidade como a alacridade prejudica o yang.

A alacridade corresponde ao Coração, aos sopros do Fogo:

“No Céu, é o calor; sobre a Terra, é o fogo;  [...] nos zang, é o Coração.[...] Nas vontades, é a alacridade (xi ). A alacridade prejudica o Coração.” (Suwen 5)
“Quando as essências e os sopros anexam (bing )[1] o Coração, há alacridade (xi )” (Suwen 23)

A alacridade patológica, em excesso, deveria então logicamente ser um excesso de fogo, uma excitação, um aquecimento, que danifica o yin e infla indevidamente o yang. De fato, isto pode ser encontrado perfeitamente em caso de alacridade excessiva; mas pode-se preferir acentuar o dano ao yin.
A razão é sem dúvida dupla. Primeiro porque a alacridade é antes de tudo um sentimento normal e desejável, que solta e refresca muito mais que aquece; em seguida por que se o vento é muito forte, que é o sopro da Madeira desequilibrado, desencadea-se a violência, o calor excessivo, o sopro do Fogo desequilibrado queima e consome não apenas os líquidos, mas também os sopros:

“Um fogo potente diminui os sopros, um fogo leve reforça os sopros;
Um fogo potente se nutre de sopros, os sopros se nutrem de um fogo leve;
Um fogo potente dispersa os sopros, um fogo leve produz sopros.” (Suwen 5)

A alacridade como relaxamento dos sopros
A alacridade representa os sopros do Fogo. Ora, na normalidade, os sopros do Fogo são o que nutre a vida e não o que a destrói. Olhemos a apresentação do elemento Fogo em um texto do 3º século D. C.:
“O Fogo é posicionado no quadrante meridional. No quadrante meridional, o yang está no alto e os Dez mil seres deixam pender os seus ramos. O Fogo (huo ) significa também transformar (hua ): os sopros yang regulam os afazeres e os Dez mil seres são mudados e transformados (bian hua 變化). [......]    O quadrante meridional comanda o crescimento e a manutenção (zhang yang 長養)” (Baihutong, cap. Cinco elementos)

O fogo que mantém a vida não é aquele que flamba e queima; é aquele que aquece e nutre, como o Coração, enquanto órgão representando o elemento Fogo, faz circular o sangue para aquecer e nutrir todo o corpo. O verão, a estação que corresponde ao elemento Fogo, é o período onde esta função está em seu apogeu, quando os ramos das árvores se curvam sob o peso dos frutos e a terra carrega as plantações que completaram seu crescimento (o Fogo gera a Terra). O fogo, os sopros, o yang mantém relações analógicas estreitas; pode-se então associar ao Fogo a ação dos sopros que, pela transformação que eles operam incessantemente sobre as essências e todas as substâncias vitais, permitem a evolução e a maturação dos seres. O Coração, também, permite a maturação e a realização da vida pessoal. O Fogo é, também, os sopros que circulam por toda parte, se elevam e se infiltram como uma fumaça, tudo o que permite propagação e desdobramento. O Coração corresponde a isso comandando as circulações vitais (mai ) que distribui regularmente o sangue e tudo o que mantém a vida.
Assim, uma alacridade que expressa os sopros equilibrados do Fogo ajuda à circulação do sangue, à difusão dos elementos nutritivos, às operações dos sopros yang. Por uma circulação sem obstrução de um sangue rico e fluido, os espíritos se manifestam, os pensamentos e disposições íntimas são mais facilmente corretos, as ruminações e reavaliações, os ressentimentos e os temores têm menos conquista sobre nós.
É a apresentação da alacridade que se encontra no capítulo 39 do Suwen:

“Quando há alacridade, os sopros se relaxam (huan ). [............]
Quando há alacridade, os sopros são bem harmonizados e a vontade (zhi ) se distribui bem por toda parte, reconstrução (ou nutrição) e defesa (ying wei 營衛) comunicam e circulam bem. É assim que os sopros estão relaxados.”

Os sopros se relaxam, pois eles não estão submetidos a nenhuma tensão indevida; não há nenhum nó no peito que atrapalharia a distribuição dos sopros yin (reconstrução) ou yang (defesa); nenhum bloqueio no mental que impediria o bom funcionamento do espírito.
Entretanto, a alacridade pode se tornar muito viva, acarretando um desequilíbrio dos sopros, no qual o yang domina o yin, o fogo queima os líquidos e consome os sopros. O relaxamento dos sopros se torna então um esgotamento.
A dilapidação só tem um tempo: uma vez que as reservas estejam esgotadas, fica-se esgotado e despojado; toda a vitalidade foi desperdiçada e os sopros, no presente, faltam. Um relaxamento completo, uma falta de tônus, por vezes mesmo o abatimento, o vazio na alma, sucedem frequentemente períodos de alegrias delirantes.
Não se vê as jovens crianças, quando há uma festa, entregarem-se de Coração à alegria, e depois cair, esgotados, em uma apatia e depois em um sono reparador? E que dizer de todos aqueles que se excitam por conta de um evento esportivo, passando da medida, sem mais conseguir parar; nutrindo sua excitação, que é cada vez menos alegre e cada vez mais violenta, por todos os meios: gritos, álcool..., confundindo a aceleração do ritmo vital com o prazer da alacridade.

 A alacridade como superexcitão e desvio
Pode-se também considerer a alacridade como um superaquecimento, uma superexcitação. A aceleração da corrente vital, de sangue e sopros, não mais consegue parar, se conter; ela se embala. O Fogo muito forte ataca então o Metal, o Pulmão, de acordo com o ciclo de dominação (ciclo ke ):

“De alacridade e de alegria, os espíritos se assustam e se dispersam; partindo, não há mais entesouramento” (Lingshu 8)

Muito normalmente, a alacridade provoca uma expansão, uma exteriorização: de alegria, pula-se, fremissa-se, volta-se aos outros, fossem estes, mesmo, estrangeiros. Uma grande alegria pode mesmo cortar o fôlego ou fazer urrar. Não se vê, não se escuta isso todos os dias nos recintos esportivos?
A doação que se faz de si mesmo ou de suas riquezas sob o golpe da excitação provocada por uma alacridade viva é raramente apropriada, refletida, útil: um homem que acaba de ganhar na loteria dará, sem consciência da incongruência, sapatos a alguém sem pés.
Se a difusão é saudável, a dispersão é patológica. Neste último caso, o interno se esvazia, há dilapidação em direção ao exterior. A inconsciência conseguinte à alacridade faz perder toda noção de perigo ou de simples discrição; nada é guardado ou conservado; mas longe de ser uma generosidade real, há aí apenas um desperdício vão. As forças da vida, as essências e os sopros, são pulsadas para fora do corpo. Seguindo-as, os próprios espíritos, deixados sem suporte e sem eco, se dispersam como pássaros assustados.

Os espíritos (shen ) são pássaros no mundo antigo. Eles têm sua liberdade de vôo. Eles têm também dos pássaros a fragilidade, o aspecto ou assustado ou amendrotado. Uma excitação viva ou uma dilatação sem limite é como o cachorro correndo loucamente pelo pátio ou o gato fazendo os pássaros fugirem.
Se tudo é empurrado para fora, como as essências poderiam continuar entesourizadas no interno? Se as essências já não são guardadas, como os espíritos poderiam se tonar em mim meus espíritos vitais (jing shen 精神 palavra por palavra: essências e espíritos)? 
Se meus espíritos vitais já não me guiam, como poderia eu me conduzir de maneira razoável e racional? Isso não é loucura? Encontra-se um pouco mais à frente, no mesmo capítulo 8 do Lingshu:

“Quando o Pulmão é acometido por uma alacridade e uma alegria[2] sem limite, os Po ficam prejudicados. Prejudicados os Po, o indivíduo perde a razão (kuang , fica-se louco); nesta perda de razão, o propósito ignora outrem, a pele se encolhe e se encarquilha. Os pêlos se tornam quebradiços e aparecem todos os sinais da morte prematura. Morre-se no verão .”

O que desaprovamos na alacridade e na alegria?

 De ser sem fronteira, sem limite. Elas são trabalhadas pelo desejo de ser sempre mais. Se nada vem opor-se a isso, torna-se um desenvolvimento em todas as direções e incontrolável. É uma excitação que faz saltar, os pontos de apoio da vida e dos espíritos se escoam, as bases são arrebatadas pelo movimento desenfreado em direção ao exterior, suscitado pela alacridade.
As instâncias Po, de qual todo o serviço é estritamente definido e ligado às essências, são levadas para longe de suas tarefas. Nada mais é como deveria ser. O arrebatamento do yang prejudica estes Po, associados das essências; os condutos naturais e instintivos da vida são pervertidos; os condutos normais do ser humano se tornam aberrantes; o yin se esvazia, as essências se empobrecem.
Os Po ficam loucos à sua maneira de Po, e se fala de loucura, loucura furiosa (kuang ), como os Hun se tornam loucos à sua maneira de Hun, quando a tristeza toma o Fígado[3]. Mas, diferentemente da loucura ligado aos Hun, não se diz da loucura ligada aos Po que ela se acompanha de esquecimento. Quando se fala de esquecimento, compreende-se com naturalidade que o indivíduo se escapa a si próprio; a crise se torna crise de identidade; ela é própria aos Hun, instâncias superiores.
Os Po estando prejudicados transmitem o golpe recebido ao propósito (yi )[4]. O Coração se agita de alacridade e de alegria, suas emoções próprias; ele se ressente da excitação dos sopros no Pulmão, ele já não fixa o propósito, não mais vivifica corretamente o Baço, não reconhece mais o que lhe é bom e conforme. Se o Coração não pára, não se aplica, não há propósito real, mas sucessões de propósitos inconsistentes e que são em seguida abortados. O propósito não conseguindo se conservar, não mais há possibilidade de uma vontade autêntica, de uma orientação sã e sensata das emoções, do mental. Nem mais pensamento, nem mais reflexão reais se formam. O propósito incapaz de servir de matriz à vontade e ao pensamento, de reconhecer e considerar seres e coisas, é um comportamento frenético, onde as relações humanas são ridicularizadas, onde a relação com o exterior é desviada moralmente: o propósito ignora outrem, é o fim das relações que fazem o homem; é o desvario, a loucura.

O Fogo do Coração, muito forte, agride o Metal do Pulmão (ciclo de dominação), o que propulsa por todos os sopros do Pulmão. Eles escoam, plenos de calor perverso, até a pele, associada ao Pulmão que se encolhe e se encarquilha sob esses jatos de ar chamuscantes.
Morre-se no verão, quando o calor exterior e a tendência natural da estação à exteriorização vêm encorajar a patologia e trazem o golpe de misericórdia à falta de entesouramento das essências e dos sopros no interno.
A loucura desencadeada por uma alacridade muito forte se encontra no Lingshu, cap. 22:

“Loucura furiosa (kuang ): tem-se bastante saudade, tem-se tendência a ver demônios e espíritos (gui shen 鬼神) e a rir sem emissão ao exterior. Isto se adquire por uma alegria muito viva (da xi 大喜). Trata-se no Taiyin, Taiyang e Yangming do pé. Depois no Taiyin, Taiyang e Yangming da mão.”

Uma alacridade viva intensifica o movimento natural dos sopros do Fogo em direção a elevação e à exteriorização, em direção à difusão de tal maneira que este movimento já não é equilibrado suficientemente pelos outros sopros. Os sopros do Coração se dispersam em direção ao exterior e se tornam incapazes de entesourizar as essências no interior. Tem-se então uma situação de vazio de sopros do Coração, de ausência de sopros vitais (jing shen 精神).

“Quando a alacridade cria um grande vazio, os sopros dos Rins encavalam (cheng  , usurpam os do Coração).” (Suwen 19)

O vazio dos sopros do Coração é sentido como um vazio interior, por exemplo, na região do epigastro, que se deseja preencher por uma espécie de bulimia. Mas comer muito não é suficiente para recolocar em ordem o movimento dos sopros, pois nada os guia corretamente em direção ao Coração. As essências não conseguem renovar corretamente o sangue do Coração e nutrir os sopros corretos.
A inspiração dos espíritos não mais está presente no olho, ela que dá iluminação ao Coração e luz à visão, já não se reconhece então o que se vê. Como é o Coração que está danificado as alucinações tomam a forma de demônios e espíritos. O olho é particularmente prejudicado por duas razões: sua relação estreita com o Coração, do qual ele é menssageiro, e sua posição alta, aonde chegam os sopros que sobem seguindo o meridiano do Coração[5]. Ora, os sopros que são pulsados para fora do Coração seguem o movimento do yang em direção ao alto.
Os sopros projetados pelo Coração em direção à garganta fazem normalmente ressoar aí o riso. Aqui, o riso torna-se rictos, pois os sopros já não são suficientemente potentes para fazê-lo ressoar.
O tratamento proposto pelo Lingshu cap. 22 se apóia primeiramente sobre a renovação, pela alimentação, dos sopros do organismo e, portanto, daqueles do Coração. Trabalhando sobre os meridianos do Baço e do Estômago, assim como naquele da Bexiga para guiar os líquidos que nutrem e que refrescam. Depois se trabalha sobre os meridianos do Pulmão, do Intestino Delgado e do Intestino Grosso para dispersar o calor em excesso no peito, o Intestino Delgado estando ligado ao Coração e o Intestino Grosso ao Pulmão[6].

 O RISO
O riso xiao é, de acordo com a etimologia tradicional, um homem que se curva e pende sua cabeça para frente , torcendo-se como bambus = chacoalhados pelo vento.
O riso, como a alacridade, é bom ou nocivo. Como ela também, ele depende do Coração:

“Nos zang, é o Coração. [.....] Nos sons, é o riso” (Suwen 5)

Quando os sopros são conduzidos pelo Fogo, pelo Coração, eles se elevam no peito e brotam na garganta produzindo o som do riso, da mesma maneira como, por exemplo, empurrados vivamente pela Madeira, pelo Fígado, os sopros produzem um grito. Quando os sopros do Coração estão equilibrados, o riso é saudável e calmo; ele sobe e explode a partir de uma situação de paz e de alacridade serena, ele relaxa as tensões, particularmente no nível do Coração; ele deixa à vontade e permite uma melhor comunicação. Mas ele pode também explodir sob a pressão de uma excitação e de uma agitação incontroladas.
O Suwen, cap. 62 faz do riso irreprimível um sinal de desequilíbrio dos sopros do Coração:

“O excesso relativo aos espíritos[7], é um riso irreprimível.”

O Lingshu, cap.8, o denuncia como uma plenitude patológica dos sopros do Coração, um calor excessivo:

“O Coração entesouriza as circulações vitais (mai), que são a habitação dos espíritos. Quando os sopros do Coração estão em estado de vazio, há tristeza, quando eles estão em estado de plenitude, ri-se sem conseguir parar (xiao bu xiu 笑不休 ).”

O riso louco incoercível, o riso louco denota uma situação interna nociva e não mais a ressonância do bem – estar.
O que nós chamamos de riso amarelo – e que os Chineses chamam de riso frio (leng xiao 冷笑 ) – é um riso que não expressa a realidade da situação interna. O Coração está frio, esvaziado de seu calor por um luto que entristece ou por uma situação que embaraça e torna vergonhoso. Mas se faz boa figura, para não perder a cara, mostra-se um riso que não pretende enganar, imitar o riso caloroso; mas um riso que significa: eu mantenho meu coração valente. Toda pessoa bem educada compreende e não insiste, para não aumentar o embaraço ou perturbar a situação.

A ALACRIDADE E A ALEGRIA

O duplo aspecto do coração

A alacridade forma igualmente um par com a alegria (le ). Acontece da alegria não diferir realmente da alacridade e que as duas emoções expressem a mesma situação onde os sopros do Coração se escapam sem conseguirem serem retidos e controlados. É o caso do Lingshu cap. 8 citado previamente.
Mas o mais frequente é a alegria diferir fundamentalmente da alacridade, mesmo que uma e outra sejam ligadas ao Coração. Elas expressam perfeitamente então o duplo aspecto do Coração, a alacridade representando o Coração como um dos Cinco zang, como os sopros do Fogo, e a alegria representando o Coração soberano, unidade do ser e da consciência, centro de todos os movimentos de sopros que constituem o físico e o mental.
A etimologia tradicional dos dois caracteres mostra bem sua diferença:

xi, a alacridade : uma mão bate no couro do tambor e a boca entoa cantos de alegria: o prazer das festas dos vilarejos, a excitação dos cantos e das danças ao som frenético do pequeno tambor, a alacridade.
le, a alegria : o grande tambor apoiado num suporte , ladeado por sinos (sinos ou litofones) = , montados sobre uma base de madeira ; eis a alegria, a música oficial[8], bem programada que, na Corte, dá ritmo às cerimonias da vida do Império, com força e majestade.

Na alacridade, existe uma excitação, algo rápido e leve, à semelhança da mão batendo no tambor viva e ritmicamente; o dinamismo vital irrompe, manifesta-se com a petulância da juventude, sob o impulso de um sangue vermelho claro.
Há mais calma, lentidão, profundidade e tranqüilidade, harmonia e vibração orquestrada, na alegria, que é também a música.
Onde o riso exprime a alacridade, frequentemente partilhada em grupo, o sorriso é suficiente para comunicar plenamente a alegria, que é harmonia consigo e harmonia com o cosmos e as miríades de seres que aí vivem.
Onde a alacridade acelera a circulação do sangue e sopros, tornando mais fácil e mais agradável nossas sensações internas e nossas percepções exteriories, a alegria é a serenidade que faz coincidir nossa vida com a vida do universo. O Coração, mestre das circulações vitais e sanguíneas (mai ) é também nossa capacidade de seguir a ordem natural do Céu em nós, a abrigar os espíritos (shen ).

A alegria do Céu
A alegria não é uma emoção; ela é um sentimento profundo que vem do fato que a vida em nós segue seu caminho sem ser desviada por desejos ou atividades contrárias à nossa natureza própria. A alegria é o que experimentamos no mais profundo de si, quando se é um com o Céu, com a ordem do mundo que se expressa no movimento regular dos sopros. Ela é como a música[9] harmoniosamente composta e executada, quando cada instrumento da orquestra, dócil à batuta do chefe, toca apenas para a harmonia do conjunto e vive apenas para ela. Aqueles que não se conduzem assim impedem o desabrochar da alegria:

“Eles conduzem seus espíritos a contra – tempo, eles se afobam e enfraquecem seu Coração, eles vão contracorrente da alegria de viver. (sheng le 生樂 ).” (Suwen 1)

No lugar de seguir o tempo, os momentos do tempo e de tocar na sua vez e com os outros, cada um quer exisitir para si próprio e por si próprio se fazendo escutar. Tal hiperatividade fruto de um ego que não quer ceder, se opõe à harmonia yin/yang, feita de alternâncias e de uniões equilibradas. É o oposto da alegria própria à vida.
Aquele que soube renunciar à avidez de viver desfruta serenamente e plenamente da alegria da vida que é a alegria ou música do Céu:

“Também se diz de quem tem o conhecimento da Música (Alegria) do Céu,
A vida é um movimento do Céu; a morte é uma transformação do ser;
Sua tranquilidade é partilha da virtude do yin; sua ativação, a irrupção yang.
Quem então conheceu o que é a Música (Alegria) celeste
Não é exposto nem ao ressentimento do Céu, nem às contestações dos homens
Nem ao obstáculo das coisas, nem às censuras das almas Gui.
O ditado o diz bem:

"Nele, a atividade é apenas Céu; a tranquilidade é apenas Terra
Seu Coração todo inteiro instalado no repouso, ele reina sobre o mundo.
As almas Gui não se exaltam, suas almas Hun não se abatem.
Seu Coração todo inteiro instalado no repouso, os Dez mil seres lhe permanecem submissos.
Isto é o Coração em repouso estando vazio
Acompanha o movimento próprio do Céu/Terra.
E comunica com os Dez mil seres.
Isto se chama: Música (Alegria) do Céu.
Através dela o Coração do Santo mantém a vida do mundo.” (Zhuangzi 13)

Alacridade e alegria, servidores do Coração

A alacridade e a alegria se encontram lado a lado, no Suwen, cap. 8, para expressar o perfeito funcionamento dos sopros do peito, a serviço do Coração:
“O Meio do peito (dan zhong 膻中) tem o cargo dos agentes em missão (chen shi 臣使 ); alacridade e alegria (xi le 喜樂) se originam.”

O Meio do peito (Danzhong) é o sítio do mar dos sopros; aí se unem os sopros que vêm diretamente do Céu pela respiração e aqueles que vêm da Terra pela transformação dos alimentos. Uma harmonia yin/yang se realiza então constantemente neste mar, composição harmoniosa que dá aos sopros sua qualidade e seu ritmo. A harmonia realizada no mar dos sopros representa a harmonia yin/yang operando em todos os sopros do corpo: sangue e sopros, reconstrução (ou nutrição) e defesa... O ritmo correto que emana disto se percebe na regularidade da respiração do Pulmão e àquela dos batimentos do Coração. Há então um efeito sobre o próprio local, no peito, no Pulmão e no Coração, e um efeito à distância em todas as circulações, comandadas desde o peito e percorrendo todo o corpo. Mas a harmonia da composição dos sopros, colocando a vida no seu ritmo natural, é também a melhor maneira de servir o Coração, de lhe permitir comandar a vida tal qual ela deve se desenrolar.
Quando os criados servem um mestre tal qual o Coração, eles não se ocupam apenas do sangue e de sopros, de reconstituição ou de defesa, de carne e de ossos; eles se ocupam, por estas circulações e graças a elas, de irradiar a influência dos Espíritos. Não apenas a saúde é boa, a tez fresca e o olho vivo, mas tem-se no Coração o sentimento de pertencer plenamente à vida, à sua própria vida: é a alegria (le ); aquilo que dá uma espécie de estimulação alegre (xi ) que se repercute em todas as instâncias (vísceras) e todos os movimentos (circulações de sangue e sopros) do organismo. Este sentimento, experenciado harmoniosamente por todos os lugares, reforça a unidade e a coesão do composto humano, é a marca que um autêntico senhor opera. O prazer de seguir espontaneamente aquilo que a vida comanda pelo Coração é também um sinal de autenticidade.
 Ausência de alegria
Contrariamente ao que acontece com todas as emoções, que se tornam patológicas pelo excesso, não há e não pode haver patologia pelo excesso de alegria. A patologia que toca a alegria é sempre uma falta, uma ausência de alegria: bu le ( 不樂 )
A ausência de alegria não é um simples desprazer; ela é o sinal que a pessoa não está em harmonia com ela mesma, que ela desenvolve pouco ou mal as potencialidades depositadas nela na origem, e que em conseqüência ela também já não se integra na harmonia cósmica.
A ausência de alegria é um sintoma, que pode assinalar um dano no Coração, antes mesmo do aparecimento de qualquer outro sinal:

“Doença de calor do Coração: primeiramente está-se sem alegria; depois, após vários dias, há o calor (febre)...” (Suwen 32)

O dano no Coração, assinalada pela ausência de alegria, não é unicamente física; ela pode ser mental:

“Quando a demência (dian ji 癲疾) começa a aparecer, fica-se antes de tudo sem alegria (bu le ),a cabeça está pesada e dolorosa, olha-se em direção ao alto e o olho está vermelho; quando a doença se intensifica e culmina, há indisposição no Coração (agitação e aquecimento).” (Lingshu  22)

Trata-se de demência (dian ), e não de loucura (kuang ) como no caso da alacridade, pois o mal começa por uma fraqueza dos sopros corretos, uma incapacidade do Coração manter seus sopros na boa ordem. Em conseqüência, uma contracorrente ascendente se instala e explica os sintomas na cabeça e no olho. A ausência de alegria assinala a fraqueza do Coração.
A ausência de alegria pode até mesmo, como no Lingshu cap.24, assinalar a fraqueza do Coração que já não consegue assegurar a vida e se torna assim o último sintoma na evolução de um mal; após o qual já não há nada a fazer além de aguardar o desfecho fatal.






[1] Anexar é se encontrar um excesso, sangue e sopros todos reunidos em um lugar, em vez de se partilharem e de se distribuirem nos diferentes lugares de suas funções.
[2] Alacridade e alegria (xi le 喜樂) é para serem tomadas aqui com o sentido único de alacridade. Cf mais à frente estudo da alegria.
[3] Ver a apresentação da tristeza. Ressalta-se que, no Lingshu cap.8, o dano aos Hun e aos Po se traduz por uma loucura agitada, conseqüente a uma grande força do yang. No caso do Fígado, atacado pela tristeza e pela aflição e afetando os Hun, a força do yang vem do bloqueio e da queima das essências, e o yang volta sua força contra a vitalidade interna, provocando a morte por retração. No caso do Pulmão atacado pela alacridade e pela alegria afetando os Po, a força do yang carrega tudo para o exterior, provocando a morte por inflamar a vida, consumindo-a por todos os meios. Cf Os Movimentos do Coração, reed. Desclée De Brouwer 2006, p.184 a 196.
De uma maneira geral, toda emoção carrega para fora de si e faz perder a razão, cada uma à sua maneira.

[4] Para uma explicaçãodo que representa o propósito, cf Os Movimentos do Coração, opus cité, p.87 à 90.
[5] O Shaoyin da mão, do qual um ramo liga o Coração ao sistema interno do olho.
[6] Os comentários citam mais frequentemente os seguintes pontos : Bp.1 & Bp 4 - Be.39, Be.58, Be.61 & Be.63 - E.36 & E.41 - P.9 & P.7 - I.D. 7 & I.D. 8 - IG. 6 & IG. 7.
[7]  Os espíritos representam aqui o Coração, os sopros do Coração. Nao pode haver excesso de espíritos, quando estes tem o sentido da presença celeste, da inteligência espiritual. Quando se fala de excesso de espíritos, é necessário compreender um excesso no calor, o fogo, os sopros do Coração.
[8] Em chinês, o caracter de pronúncia le significa alegria e de pronuncia yue significa música.
[9] Pois é o mesmo caracter para alegria e música.




* Passagem extraída do Fascículo "As Emoções", editada pela E.E.A.
http://www.elisabeth-rochat.com/docs_fr.html

Tradução de Andrea Jacusiel.





ZHUANGZI ch. 5 - Trad. Jean Lévi

  O Tao deu-lhe a sua aparência e o céu a sua forma, porque deixaria que as paixões prejudiquem o seu corpo? Você se deixa distrair pelo mu...