quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

AS ORIGENS DO QI


Vento

Para entender a origem do qi, precisamos primeiro olhar para o conceito de vento. Um caractere específico para qi não aparece nas primeiras inscrições oraculares e de bronze, nem na maioria dos textos chineses antigos, como O Livro dos Documentos, Shujing (書經), ou O Livro das Odes, Shijing (詩經). O que realmente encontramos em inscrições oraculares muito antigas dos séculos XIV, XIII, XII a.C. é o caractere para vento, e essas primeiras descrições de vento têm algumas qualidades que serão posteriormente atribuídas ao qi.

Existem diversos tipos de vento, por exemplo os Quatro ventos e os Oito ventos, e cada um deles contribui para o conceito de qi em expansão. No início, qi aparece como algo que vem do Céu e penetra a Terra. Ele exerce uma influência sobre a Terra e provoca uma reação, por exemplo, o qi que gera frio e calor, dia e noite, vento e chuva.

Yin e Yang

Posteriormente, qi será entendido como aquilo que está por trás de yin yang (陰陽) e essa é uma mudança muito importante. Não podemos falar de qi sem falar de yin yang, e não podemos falar de yin yang sem falar de qi. Por exemplo, yin e yang aparecem nos primeiros textos como Dois dos Seis qi do Céu. Eles são como frio e calor. Isso quer dizer que não são apenas o lado sombreado e iluminado ou ensolarado de uma montanha; são mais que isso, eles são o frio e o calor, o resultado de estar na luz ou na sombra. Yin e yang se tornarão um tipo de diferenciação de qi, assim como qi se tornará a influência por trás de qualquer tipo de manifestação. Yin qi se tornará o princípio por trás do frio e do resfriamento, e yang qi se tornará o princípio por trás do calor e do aquecimento.

Podemos observar essas diferenças evoluindo, e esse desenvolvimento será relacionado com as mudanças do clima e a passagem do tempo, que é visto como um

movimento de qi e yin yang, por meio do resfriamento do verão para o inverno e do aquecimento do inverno para o verão. Então, aqui o qi está sendo usado para codificar o movimento do tempo, e esse movimento não é visto apenas nas Quatro estações, mas também na progressão de cada dia. Muitos dos textos descrevem tudo isso.

Qi interior

À medida que a compreensão do qi evolui para aquilo que está por trás da aparência das coisas, há o desenvolvimento daquilo que podemos chamar de analogia. Por exemplo, o mesmo tipo de qi que gera vento e tempestades na natureza é também visto como gerador de raiva. Assim, nos primeiros textos, há uma relação entre os Seis qi do Céu e as Seis qualidades de qi dentro de um ser humano. Esses textos mostram o desenvolvimento do qi não apenas no exterior, na natureza, mas também no âmago do ser humano. Um exemplo disso está em Zhuangzi, onde qi é visto não apenas como o que se encontra por trás de qualquer fenômeno, mas também como a correspondência entre diferentes fenômenos que apresentam características similares. Por exemplo, o que há por trás da raiva e do vento pode também estar por trás de todos os tipos de impulsos violentos que iniciam algo; um movimento de ascensão, como o nascer do sol ou a primavera.

Por esse processo de correspondências, há a possibilidade de se desenvolver uma cosmologia baseada no QI, Yin Yang e nos Cinco elementos. O conceito de Cinco elementos ou agentes (wu xing 五 行) desenvolveu-se por volta do século III a.C. Não era possível desenvolver uma cosmologia de correspondências antes de haver uma noção substancial de QI para fazer essas correspondências, o que ocorreu por volta dos séculos IV e III a.C.

Qi e a origem da vida

No fim dos séculos III e II a.C., qi estava ligado à origem e produção da vida. Isso é muito evidente, mas a mudança veio com a compreensão de que qi não é apenas a força de transformação que gera vida, mas também pode ser considerado como a própria origem da vida. Isso nos leva a perguntar que tipo de relação existe entre qi e seres vivos, entre qi e forma. Por “forma” queremos dizer tudo que tem uma qualidade específica e perfeita; forma requer substância e essências. O início da forma ocorre pela concentração de yin e condensação de qi, o que permite o aparecimento da substância; quando o qi se torna yin e yang está sujeito aos movimentos e transformações que geram oposição. No interior dessa dualidade entre essências e qi, forma e qi, o qi será tratado como específico, com qualidades específicas, e não mais na totalidade. Assim, pode ser mudado, alterado e até pervertido, especialmente pela força da natureza humana.

Então, qual a relação entre qi e os espíritos? O qi, em si mesmo, não é uma substância nem um espírito. O que podemos dizer é que o qi se manifesta por meio dos fenômenos, e é inseparável dessas manifestações, às quais confere especificidade e movimento. Por outro lado, não podemos dizer que qi é a mesma coisa que tais fenômenos ou seres.

Quando as coisas deixam de ser, o qi não desaparece, mas, sem forma, já não pode ser percebido. Então, poderíamos dizer que ele é um tipo de potencialidade infinita e indefinida, mas “potencialidade” soa como uma abstração, o que não é o caso do qi. Ele é uma realidade. Assim, finalmente, chegamos à compreensão de que tudo é qi, e qi é tudo que existe; portanto, Céu e Terra e tudo que está entre eles, tudo que pode envolvê-los e todos os seres e fenômenos que existem entre eles, são apenas manifestações específicas de qi,

as quais existem por um tempo. Tratando-se de uma emoção, existe por um dia. Se for uma montanha, existe por mais tempo. Por fim, constatamos que tudo é qi, a tal ponto que as próprias essências são apenas uma concentração de qi.

Os chineses também têm uma paixão por unidade, e por meio de sua visão de qi, encontraram a unidade de todas as coisas. De acordo com essa visão, meu qi não é exatamente meu, é meu porque é minha vida naquele momento. O mesmo vale para os meus espíritos. Meus espíritos não são especialmente meus, são meus porque estão efetivos na minha vida no momento. Se minha vida terminar, os espíritos e o qi não desaparecerão, mas serão outra coisa ou estarão em outro lugar. Eles continuarão a participar do infinito e ilimitado movimento da vida. Essa não é uma descrição adequada para falar do que está por trás da aparência dos seres vivos por causa dos limites da linguagem; mas o qi está nesse nível, ele está no nível da origem de toda manifestação de vida. Assim, a cor, o som e o odor de um ser específico são todos uma questão de qi.

Ao mesmo tempo, também temos a ideia de qi como o lado yang de toda relação yin yang, como sangue e qi, essências e qi, forma corporal e qi. Então, a questão é se os qi são capazes de ser a ordem natural da vida por si mesmos ou precisaríamos acrescentar algo. Esse “algo acrescentado” tem sido chamado de diferentes nomes de acordo com a era ou a escola de pensamento: o Dao, o Li, os princípios da escola confuciana, ou o shen (神). Existem diversas abordagens nos textos tardios, mas a impressão geral é de que o qi é “guiado” pelo Céu de alguma maneira, mas temos de ser cuidadosos aqui, porque ainda que o qi esteja relacionado com algo que o guie, não há dualidade. A realidade última é sempre a fusão dos opostos em uma unidade. Isso tem de estar muito claro, porque é um erro frequente no Ocidente.

A cosmologia que encontramos na medicina chinesa e no Taoismo se baseia em qi, ying yang e wu xing (os Cinco elementos/agentes). Uma compreensão profunda da noção de qi é necessária para que essa cosmologia possa existir e operar com todas as suas correspondências. Se qi fosse somente o frio ou o calor, por exemplo, não se poderia ter uma base para essa cosmologia complexa. Evidentemente, o conceito de qi, em toda a sua diversidade e riqueza, não habitava o pensamento chinês antes do século III a.C.; não havia traços disso na época, consequentemente, nenhuma possibilidade de tais conexões serem feitas de modo a estabelecer uma cosmologia.

Se abrirmos um bom dicionário de chinês e procurarmos por qi, provavelmente vamos encontrar vários significados que expressam suas diferentes utilizações ao longo da história. Por exemplo, pode tratar-se de um estado de totalidade indiferenciada na qual tudo é qi. Pode ser o princípio que engendra a vida, o qi original, ou os componentes dos agentes constituintes de tudo aquilo que existe. Pode-se, também, encontrar a ideia de força e atividade da vida em cada organismo ou fenômeno; o ímpeto por trás do movimento, a energia, as forças animadoras do universo. Qi também é usado para coisas mais observáveis, como o sopro, a exalação, o gás ou o vapor. Encontramos todos esses significados nesse caractere.

O qi gera movimento, mudança e transformação nas diversas expressões da vida, e permite que se manifestem qualidades e aspectos específicos. Por exemplo, na natureza é o ar, mas é também o estado da natureza em si, o clima e a atmosfera. É cada uma das Quatro estações e cada um dos 24 períodos de 15 dias que formam o ano solar. Os 24 períodos do ano são chamados jie qi(節 氣). Qi também é usado para expressar qualquer quantidade de tempo.

No organismo, qi pode ser empregado para designar a respiração, a exalação ou qualquer tipo de expressão. Pode também descrever cor e aparência. É a maneira, a atitude, o comportamento e a expressão do contentor. Por exemplo, a expressão que tenho no rosto

é o resultado do qi. Tanto minha conduta quanto minha linguagem corporal, são manifestações de qi, tal como meu humor, meu temperamento e minhas emoções. O “qi do baço” (pi qi 脾 氣) é uma expressão popular em chinês para traduzir o humor do dia; e estar de mau humor é ter um mau qi do baço. É claro que qi também é usado para a manifestação yang da raiva, gerar qi significa estar com raiva, mas também é utilizado para um estado de espírito, e o movimento ou a disposição natural do coração. Do mesmo modo, é utilizado para tratar das forças vitais, não só do corpo – força da constituição –, mas também para a força da mente. Assim, a inteligência, a força de vontade de cada ser, também é qi. A qualidade de animação ou a presença dos espíritos é graças ao qi, e isso é usado para se referir a tudo aquilo que pode ser expresso. Ao analisarmos a caligrafia, poderíamos afirmar que o qi está presente nos caracteres. Isso é algo que podemos sentir. A ideia do qi está por trás de todos os tipos de manifestação, ao mesmo tempo, trata-se da força que engendra a vida.

Essa compreensão de qi e nossa habilidade para percebê-lo estão por trás de vários métodos de diagnóstico usados na medicina chinesa, sendo o movimento e a qualidade do qi, uma expressão do que subjaz.



Trecho do livro "Tudo é Qi ", de Elisabeth Rochat de la Vallée , editado em 2022 pela Editora Inserir.






ZHUANGZI ch. 5 - Trad. Jean Lévi

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