terça-feira, 15 de setembro de 2020

Fisiologia do Cérebro

Elisabeth Rochat de la Vallée

 

Tradução: Mariana C. T. Scarpa

Revisão: Thiago Fortes Ribas


Transcrição da conferência no Encontro anual da FFA ( Fédération Française d'Acupuncture) à Chartres, França,  em 2018:

https://vimeo.com/112034511




O CARACTERE

            O radical do caractere nao (), cérebro, é a carne () [localizado] à esquerda do caractere e indica que a noção faz parte de um corpo de carne. Na parte direita, acima se encontram os cabelos (), e embaixo um tipo de caixa com alguma coisa no interior (), a qual evoca “a medula que está no crânio”, segundo a interpretação clássica[i]. Assim, a parte da direita em seu conjunto mostra o cérebro no topo do corpo, abaixo dos cabelos.

            Na antiga escrita chinesa, o caractere designado para cérebro tinha um outro radical: () que deveria indicar a simetria estrutural do cérebro em dois hemisférios e se escrevia (), este caractere caiu em desuso desde muito tempo.

            Desta forma, o caractere de cérebro, nao (), representa a medula invisível do cérebro no interior dos ossos do crânio e coberto por cabelos. Os cabelos são a expressão de uma superabundância de sangue e de essências. Um cérebro corretamente irrigado e nutrido por essas essências dos cinco zang se reflete na beleza e no comprimento dos cabelos. Isto é para explicar o porquê de os cabelos aparecerem no caractere de cérebro.

            Na descrição dos meridianos, no LingShu capítulo 10, o caractere nao () aparece somente durante a descrição do trajeto do meridiano da Bexiga, iniciando no alto no ângulo interno do olho e subindo sob o crânio em direção ao topo da cabeça, onde ele faz uma relação de conexão especial, luo (), com o cérebro[ii].

            Depois o trajeto continua, voltando-se [para baixo], saindo do cérebro e descendo pela nuca. No Suwen capítulo 60, o dumai possui exatamente o mesmo trajeto e, portanto, as mesmas relações com o cérebro que o meridiano da Bexiga.

            O Nanjing, na dificuldade 28, fornece uma descrição do dumai que é mais usual, fazendo-o sair do períneo, subindo em seguida pela coluna vertebral até a cabeça. Depois de ter passado pelo DM16 [VG16] (fengfu), o meridiano entra no cérebro com o qual ele mantém uma relação de obediência, uma relação shu (). O caractere shu dá a ideia de pertencimento a alguma coisa, de aderência ou de dependência de alguma coisa ou de alguém, como um vassalo que depende de seu senhor, os dois estão ligados à serviço de uma mesma causa ou de um mesmo país[iii].

            A relação do dumai com o cérebro é, portanto, de conexão, luo, no Suwen, e de obediência, shu, no Nanjing. De fato, ele possui uma relação de conexão quando ele segue o meridiano da Bexiga e desce; e uma relação de obediência quando ele segue seu movimento mais habitual e sobe. Poderíamos dizer que o dumai se liga ao cérebro de diversas formas. O meridiano da Bexiga é o taiyang, e o dumai é o mestre e a origem de todos os yang no corpo. Todos os meridianos yang circulam na cabeça, assim como os meridianos yin pertencentes aos dois órgãos zang que estão do lado yang, ou seja, ao Fígado e ao Coração (o meridiano do Fígado indo até o vértice e o meridiano do Coração indo do sistema ocular ao interior do cérebro). Assim, podemos dizer que os sopros yang sobem até o topo da cabeça.

 

SUWEN capítulo 81

            [Conforme] Elisabeth Rochat: O Suwen, no capítulo 81, define o cérebro como sendo yin, isto nos mostra a dualidade deste fu extraordinário. Com efeito, ele está situado onde todos os sopros yang conduzem suas essências mais claras, ele está no lugar onde todos os sopros yang convergem, que isso seja o vértice ou mesmo na base do crânio: nós temos, por exemplo, no ponto DM14 [VG14], a junção de todos os yang.

            Mas o cérebro é igualmente definido como um fu extraordinário entesourando as essências, como [se vê] no capítulo 81 do Suwen, definido como sendo yin. Podemos dizer que no nível dos fu extraordinários, temos um tipo de síntese potente de yin yang. Nós podemos igualmente afirmar que isso que irá subir ao cérebro será, no nível das essências, isto que representa o mais claro e o mais puro, uma vez que é isto que vai subir ao mais alto e, normalmente, mais facilmente.

            As essências possuem um duplo aspecto:

            - um aspecto psíquico: elas são o material de base, a vitalidade da vida; elas se encarnam na vida, no corpo, nas vísceras, no sangue, na água, nos líquidos, nas carnes, na medula, nos sopros, etc., para formar um corpo.

            - um aspecto invisível: elas constituem o programa, o plano, segundo o qual as essências são empregadas para construir um corpo (como a semente do carvalho contêm o carvalho). Por exemplo, na alimentação, eu vou assimilar as essências (os nutrientes): isto que me serve para renovar minha vida tal como ela é nas suas propriedades (um carvalho possui outras maneiras de renovar suas essências de acordo com o seu modelo de vida).

            Podemos igualmente observar o contexto a cada vez para ver com qual outro caractere as essências vão se encontrar associadas, afim de compreender qual seria a posição exata delas. Por exemplo, essências/espíritos (jing shen 精神) e essências/sopros (jing qi ).

            Jing shen (精神), essências e espíritos, espírito vital, exprime a qualidade da vida que irradia no homem. Assim, pela virtude das essências bem formadas em si mesmas, os espíritos (shen) podem se exprimir. Mas, ao mesmo tempo, se as essências não são suficientes para circular, a pessoa e os espíritos se tornam cada vez mais fracos e não haverá mais nem alegria nem interesse pela vida.

            Os sopros podem provir da respiração, da alimentação e disto tudo que nos penetra através das essências para renovar nossa potência de vida.

            As essências dependem da contribuição de todas as vísceras. Estas são os nutrientes que são dados sob a forma de sopros. Mas os sopros não podem realmente ser assimilados se as essências não estão lá para lhes dar a possibilidade de se manifestar e de agir. Em cada ser, a vitalidade das essências se torna especificamente qualificada: por exemplo, os humanos possuem as essências mais refinadas do universo.

            Uma distinção grosseira seria a de afirmar que no caso do jing shen, os espíritos (shen) iluminam a partir das essências; este não é exatamente o caso para o jing qi, essências e sopros, em que as essências permitem a presença e a atividade dos sopros. As essências desempenham o mesmo papel em todas as circunstâncias, o qual é de fixar ou de estabilizar a fim de dar a possibilidade de se manifestar em um corpo vivo.

 

SUWEN capítulo 16 e 17

 

            Estes dois textos não falam especificamente do cérebro, mas da cabeça. O caractere de cabeça é tou ().

            Resumindo brevemente o capítulo 16. Os cinco zang podem ser postos em relação com outros conjuntos realizados por seis, por exemplo, as seis partes do corpo. Neste caso, temos as cinco partes do corpo ligadas comumente aos cinco zang e depois alguma coisa aparece em sexta posição. Algumas vezes é uma passagem ou um lugar especial do corpo, isto vai depender do contexto.

            No capítulo 16, temos uma correspondência entre os cinco zang e um par de meses no ano. Evidentemente, um zang vai faltar, e, em seu lugar, se acrescenta a cabeça na lista dos cinco zang. Durante o quinto e sexto mês do ano, os sopros do corpo humano são ditos particularmente ativos na cabeça, porque é neste momento que o movimento de elevação é mais forte, uma vez que os sopros estão igualmente mais quentes. Neste sentido, a cabeça não está separada dos cinco zang, mas pode constituir um conjunto de seis com eles e ela se encontra em todo o caso representada como ascensão extrema do movimento yang na vida.

            O capítulo 17 tem uma particularidade a mais: “Os cinco zang são a força poderosa do corpo. A cabeça é o fu das essências irradiadas (jing ming 精明). Quando a cabeça está perturbada, a visão se enfraquece, o espírito vital (jing shen 精神) está desprovido de força” (Suwen, capítulo 17).

            Jing ming (精明) é traduzido por essências luminosas. Ming () sugere a ideia de luz, de irradiação, mas também de inteligência; é uma emanação que está plena de vida; encontramos esse mesmo caractere na expressão shen ming (神明) a qual podemos traduzir por: espírito e luz, a radiância luminosa dos espíritos ou as inteligências espirituais. Ming é a luz interior vinda do espírito que estão mantidas na profundeza do coração, mas que são capazes de iluminar toda a vida e de assumir a boa conduta em cada parte do corpo. Esta luz interior se vê na aparência de cada pessoa. Se a pessoa é capaz de manter seus espíritos em seu Coração e de permitir que eles iluminem cada coisa, em particular através dos outros zang, então essas circulações serão bem feitas, sua tez será bela, o brilho dos seus olhos perfeito e sua inteligência da realidade das coisas será plena. Desta forma, ming, a luz, se encontra aqui acoplada à Jing, as essências.

            Temos, portanto, no nível da cabeça, a subida de todos os sopros Yang, os mesmos sopros yang que podem igualmente se estabelecer como suporte para os espíritos. E temos igualmente no cérebro o acúmulo das mais puras essências do organismo. Desse modo, que seja a cabeça ou o cérebro, eles estão em um lugar onde essências e sopros se encontram reunidos em seu mais alto nível. É por isso que se encontram lá os órgãos do sentido, a expressão das faculdades superiores do ser humano, os orifícios superiores, em particular esses que, como o nariz, o olho, ou orelha, trabalham com isso que não é palpável: os odores, os sons, a visão, isto que há de mais fino e mais sutil. Estes orifícios superiores necessitam da conjunção das essências, de sangue e de sopros, mas igualmente, a presença dos espíritos, para funcionar bem não somente em um nível psicológico, mas que reflita toda a especificidade disso que é um ser humano.

            O Suwen capítulo 81, assim como o Lingshu capítulo 80, explicam particularmente essa questão para os olhos. As essências e os espíritos provenientes dos cinco zang e seis fu sobem até o olho para formar a visão e para permitir que a luz interior, que é a inteligência, se manifeste através da pupila.

            O primeiro ponto do meridiano da Bexiga, no canto interno do olho, é jing ming (睛明). O primeiro caractere jing () não é o mesmo que o jing () de essência, apesar de ele ser parecido e que ele tenha uma parte em comum. O radical muda uma vez que a esquerda temos o radical de olho () no lugar daquele de grão de cereal () [usado] para as essências. A direita, temos a parte comum a eles, (), é a cor verde, mais exatamente a cor de uma vida bem cuidada. É a cor da vegetação quando uma seiva rica e nova corre por ela na primavera. É a manifestação no homem, analogamente, de um movimento de subida das essências ricas.

            Pelo fato de que todas as essências sobem até os olhos, a partir do cinco zang e dos seis fu, o olho, recebendo essas essências mais puras e as utilizando, é capaz de se deixar penetrar pela potência dos espíritos, isto que se manifesta também através da relação específica deste orifício, o olho, com o Coração e seu meridiano[iv]. O olho é beneficiado igualmente de todos os meridianos yang que circulam nesta região. Assim, o olho é capaz de preencher todas as funções da visão, de distinguir claramente, mais igualmente de poder discernir não somente psicologicamente, mas também mentalmente. Isto vem da presença dos espíritos do Coração. É por esta presença dos espíritos no olho que a força do olhar que lançamos sobre uma outra pessoa pode ser compreendida por esta última com apenas um golpe de vista.

            O olho é uma imagem extremamente útil para compreender a mesma conexão no nível do cérebro, pois o cérebro é a reunião das essências e dos sopros que permitem a presença dos espíritos e permite, igualmente, o bom funcionamento dos órgãos dos sentidos no mais alto nível. Vários comentadores sublinharam o fato de que os sete orifícios superiores não funcionam bem se os espíritos não estão presentes neles. Podemos compreender que as atividades sutis no nível dos órgãos dos sentidos são realizadas através disso que se chama jing ming (精明), através das essências que não somente podem nutrir psicologicamente, mas também isto que permite a presença luminosa e inteligente dos espíritos. Evidentemente os sopros são apresentados como isto que vai permitir todos os movimentos, os transportes e as transformações necessárias.

            Estudemos uma citação de Bencao gangmu, o herbário escrito por Li Shizhen, ao final do século XVI d.c. Ela nos fornece uma outra definição de cérebro: “O cérebro é o fu dos yuan shen (元神)” Yuan () representa a origem e shen (), os espíritos.

            Podemos dizer que o cérebro, preenchido de essências sob a autoridade dos Rins e cuja pureza manifesta a fidelidade à natureza original, oferece aos espíritos do Coração o lugar perfeito para esclarecer as atividades mais altas e mais sutis do ser humano no topo da cabeça.

            Assim temos a relação com os Rins pela medula espinhal e a relação com o Coração pelo meridiano e o luo do shaoyin da mão. É também no rosto e na cabeça que podemos ver a circulação mais fina do sangue e sopros através do aspecto da tez. Toda mudança neste nível é uma informação sobre o sangue, os sopros e os espíritos manifestos pelas essências.

            Se estamos no mais alto nível, temos somente as mais puras essências e sopros, pois o processo de filtragem trabalhou corretamente durante toda a subida. Muito das perturbações neste nível são devido a penetração do turvo: mucos, umidade e assim por diante. Pode-se ter dor de cabeça com as substâncias impuras enevoando a cabeça. O Suwen evoca o diagnóstico dos olhos não somente para ver os olhos, mas também o espírito e através dele os zang no íntimo do corpo.

            A passagem do Suwen capítulo 10 “todos os mai dependem do olho” significa que todas as circulações vitais yang, assim como os trajetos yin, do Fígado que passa atrás do olho e do Coração que acessa o olho, formam uma constelação em torno dos olhos e levam a ele um sopro muito rico. Com este sopro, eles trazem também os líquidos necessários a uma boa nutrição do sistema visual. E porque o olho é como um sol, ele é um centro de radiância não somente para a visão, mas também para a circulação dos sopros através de todos os meridianos. Podemos ver isso na circulação dos sopros defensivos (wei qi). Durante o dia, é sempre a partir do olho que os sopros defensivos (wei qi) circulam nos meridianos yang e nas zonas superficiais do corpo. Bexiga 1 é um ponto importante de partida da circulação dos sopros defensivos durante o dia e é também o ponto de partida de uma parte do dumai e do taiyang do pé (Bexiga), segundo Suwen, capítulo 60 e Lingshu, capítulo 10.

            Uma outra passagem do Suwen, capítulo 17, fornece uma definição das essências luminosas (jing ming 精明): “Jing ming: por isso nós somos capazes de ver os dez mil seres, de distinguir o branco e o preto e de diferenciar o curto do longo”. Não ser capaz de distinguir as cores ou o tamanho dos objetos é um sinal de enfraquecimento das essências. Através dos meridianos do Coração e do Fígado, shen () e hun () estão presentes no nível dos orifícios superiores do cérebro.

            Esta citação apresenta dois aspectos. De um lado, a visão correta depende do bom funcionamento de todos os mecanismos pertencentes ao olho, mas também aos espíritos. Por outro lado, um problema de visão revela que as essências diminuem ou se encontram com uma qualidade insuficiente para que os espíritos tragam a luminosa radiância.

 

LINGSHU, CAPÍTULO 28

            O Lingshu [capítulo] 28 descreve o caminho e a transmissão especial dos líquidos corporais densos (ye ) para a parte alta do corpo, até os olhos. Os olhos são apresentados como o lugar onde a quantidade de circulações vitais convergem e essa circulação conduz os líquidos ye em direção as regiões altas e o cérebro. A orelha é igualmente apresentada como o lugar onde convergem uma quantidade de circulações vitais. Graça a esta circulação vital, o meridiano leva os líquidos ye para o olho; se as impurezas estão presentes no Coração, elas serão excretadas pelas lágrimas. Mas um excesso de lágrimas secaria os olhos e enfraqueceria as essências.

            O final deste capítulo apresenta os perversos extraordinários (qi xie ) que são capazes de tocar particularmente os orifícios superiores, ou seja, a cabeça. O texto afirma que se os sopros perversos são capazes de invadir estas regiões do corpo, é porque os sopros corretos nessas regiões superiores do corpo e o cérebro estão insuficientes, é isto que provoca os zumbidos na orelha e os problemas na visão.

 

LINGSHU, CAPÍTULO 80

            Lingshu [capítulo] 80 desenvolve a relação entre o cérebro e os olhos. O início do capítulo fornece a descrição dos olhos e sua divisão em cinco partes segundo os cinco zang. Depois vem este texto: “[As essências dos cinco zang que compõem o olho] sobem para pertencerem ao cérebro e aparecerem no meio da nuca. Quando os perversos alcançam a nuca, se aproveitando de um vazio do corpo e penetrando em profundidade, então, eles seguem o sistema de conexão do olho (mu xi 目系) para penetrar no cérebro. Penetrando no cérebro, então, o cérebro gira[v] (nao zhuan 腦轉) e se o cérebro gira, isso irradia ao olho e as conexões são espasmadas. Se elas são espasmadas, então, ao olhar a vista se turva. Quando o perverso atinge as essências, as essências não podem mais permanecerem associadas e, com isso, as essências se dissipam. Se as essências se dissipam, a visão se desorienta e se vê duplicado.

            “O olho é, as essências dos cinco zang e dos seis fu, o campo permanente da reconstrução/nutrição e da defesa (ying wei 營衛) das almas Hun e das Po; lá são produzidos o sopro espiritual (shen qi ). Assim, quando os espíritos estão cansados, Hun e Po se dissipam, vontade (zhi ) e propósito (yi ) estão em desordem”.

            O caractere próprio para o cérebro não está presente neste texto, mas o cérebro está bem presente, uma vez que é ele quem tem uma relação íntima com o olho e todo o sistema visual. Dado que as essências dos cinco zang e dos seis fu, assim como os sopros que sustentam os espíritos, estão necessariamente no bom funcionamento dos olhos, eles operam no nível do cérebro. Os comentadores dizem que a luz que vem da qualidade das essências, as essências luminosas (jing ming 精明), são necessárias à visão. Os espíritos estão especialmente e claramente presentes no nível dos olhos, pois o olho é o mensageiro do Coração.

 

LINGSHU, CAPÍTULO 21

            Este capítulo descreve uma parte do trajeto do meridiano da Bexiga, o taiyang do pé, quando ele obedece a “raiz do olho”[vi], pois penetra no cérebro.

            “O Taiyang do pé está em livre comunicação (tong ) com a nuca e penetra no cérebro (nao ); ele vai diretamente ter uma relação de dependência (shu ) com as raízes do olho (mu gen 目根), isso que se chama: sistema de relações do olho (yan xi 眼系). Se a cabeça e o olho sofrem de dores, tomamos o meio da nuca entre os dois músculos[vii]. Ele toma o cérebro e se distingue em Yinqiao e Yangqiao. Yin e yang se cruzam, o yang penetra o yin e o yin sai do yang. Há um cruzamento no canto interno. Quando os sopros yang estão subindo em potência, então, abrimos os olhos. Quando os sopros yin estão subindo em potência, então, fecham-se os olhos”.

            Já vimos a relação entre o cérebro e o dumai. Este capítulo fala da comunicação entre dois outros meridianos extraordinários, o yin e o yang Qiaomai, que tem seu lugar igualmente no cérebro. Isto mostra ainda mais a importância da conjunção yin yang no cérebro. Com efeito, a região do ponto Jingming – Bexiga1, é a projeção da junção dos yin e yang Qiaomai no interior do cérebro. Conhecemos a relação dos yin e yang Qiaomai com os sopros defensivos (wei qi) e os ritmos que cada homem deve ter entre o dia e a noite, atividade e repouso, despertar e sono. É uma maneira de exprimir a harmonia yin yang no tempo, por uma alternância regular. Quando é hora de despertar, o yang domina e tudo funciona no nível yang. E quando é hora de ir para a cama, tudo isso que circulava no nível do yang e da superfície entra no yin. O yang penetra o yin. É exatamente a imagem da circulação dos sopros defensivos.

 

SUWEN, CAPÍTULO 10

            Este capítulo contém a seguinte frase: “Toda medula (sui ) pertence ao (shu ) do cérebro (nao )”.

            A menção “pertence ao” indica que a natureza do cérebro e da medula é a mesma. É o mesmo caractere (shu ) que havíamos traduzido por “obedecer” no contexto dos trajetos dos meridianos. Quando o meridiano taiyin da mão obedece (shu ) ao Pulmão, é porque seus sopros são de mesma natureza. Se há uma relação luo de conexão com o Intestino Grosso, é porque eles não são de mesma natureza, mas podem trazer alguma coisa um para o outro. A medula se rende ao cérebro como em seu lugar natural de vida. A medula está lá com seu próprio elemento; e a relação entre cérebro e medula se encontra em um grande número de textos. O cérebro é o mar da medula e eles se encontram muito frequentemente ligados nas patologias, por exemplo, no Lingshu, capítulo 30.

 

LINGSHU, CAPÍTULO 30

            Neste capítulo o imperador pede a Qibo uma definição de essências (jing ), de sopros (qi ), de líquidos corporais jin () e ye (), de sangue (xue ) e dos mai (circulações vitais, ). Qibo responde que todos são um só sopro, mas com seis nomes diferentes. Ele fornece uma explicação e apresenta cada um deles. Eis a definição que ele apresenta para os ye: “Os cereais entram; os sopros impregnam de sua plenitude (man 滿); a embebição fecunda (nao ze 淖澤) se propaga nos ossos e os ossos podem assumir os movimentos de extensão e flexão; um correr fecundo tonifica e torna pleno o cérebro e a medula, enquanto que as camadas da pele se tornam sedosas por uma boa irrigação; isto é o que chamamos de líquidos ye ()”.

            Na sequência, o capítulo fornece uma patologia para cada um destes Seis sopros. Para os líquidos densos ye: “Quando os ye estão gastos, os movimentos de flexão e de extensão que estão sob autoridade dos ossos, não se fazem tão facilmente, a tez murcha, cérebro e medula esmorecem, as pernas ficam doloridas e as orelhas tem zumbidos frequentes”.

 

LINGSHU, CAPÍTULO 36

            A mesma ideia é retomada em termos idênticos ou próximos: “Por uma harmoniosa conjunção (he he 和合), os jin ye extraído dos Cinco cereais formam uma rica massa (gao ) que, no interior, se infiltra nas cavidades dos ossos, tonifica e torna pleno (bu yi 補益) cérebro e medula, e desce escorrendo pela parte yin da coxa.

            Mas se yin e yang não compõem harmoniosamente (bu he 不和), então, os ye transbordam (yi ) e descem escorrendo para o yin (aparelho genital); medula e ye se enfraquecem descendo; e se passarmos da medida neste chamado na direção para baixo, é o vazio (xu ); e quando há um vazio, há dor na lombar e nas costas e as pernas ficam doloridas”.

            Neste texto veremos a afinidade entre os ossos, medulas e cérebro, pois eles são irrigados pelas essências e os líquidos orgânicos. Esta irrigação depende da potência dos Rins. As essências e os líquidos ye devem subir para a parte mais alta do corpo, contudo, se eles não o fazem, por exemplo, porque eles se esgotaram devido ao excesso sexual ou por uma fraqueza dos Rins, então, os lugares e funções normalmente plenos pelas essências padecem; daí aparecem sintomas de dores lombares, de impotências ou fraquezas nas pernas.

            Podemos fazer um paralelo com as práticas sexuais taoístas que visam reforçar os Rins e o cérebro pela retenção da ejaculação e a reabsorção das essências espermáticas no organismo.

            O caractere traduzido para uma rica massa é gao (). Abaixo do radical 130 da carne () se encontra a parte fonética gao () que significa acima, superior, numa posição alta. Este caractere gao () é o mesmo que se encontra na descrição do início da vida embrionária, isto mostra bem que se trata de uma substância fértil, rica de essência e de vitalidade, e que suas relações com a origem e com as essências dos Rins são fortes.

 

LINGSHU, CAPÍTULO 52

            Apresentamos dois capítulos em que o cérebro aparecia numa série de quatro entidades. Uma é bem conhecida: os quatro mares do Lingshu [capítulo] 33; outra, no Lingshu [capítulo] 52, é menos conhecida. Trata-se das quatro ruas dos sopros.

            “Os sopros do peito (xiong ) têm uma rua (jie ). Os sopros do abdômen (fu ) têm uma rua. Os sopros da cabeça (tou ) têm uma rua. Os sopros da perna têm uma rua. Assim, quando os sopros estão na cabeça, eles param no cérebro. Quando eles estão no peito, eles param nas áreas laterais do peito (ying ) como os pontos shu das costas. Quando eles estão no abdômen, eles param no ponto shu das costas e no Chongmai a circulação (mai ) bate à direita e à esquerda do umbigo. Quando eles estão nas pernas, eles param no Qijie (Estômago 30), assim como no Chengshan (Bexiga 57) e ao redor do maléolo” (Lingshu, capítulo 52).

            Desse modo, quando os sopros estão na cabeça, eles param no cérebro. Eles param, mas eles não estão bloqueados. É uma estação em que eles param para serem bem conduzidos. Visto que a rua é um lugar de passagem. O cérebro é a rua para regular os sopros da cabeça. É um lugar em que isto que sobe neste nível se acumula. A rua é utilizada para as livres comunicações e o cérebro é utilizado para as livres comunicações da medula através do corpo. A função do cérebro não é limitar o crânio, mas irradiar particularmente através da medula. O Lingshu, capítulo 52, chama o cérebro uma rua (jie ) de sopros.

Nos comentários nós encontramos o ponto DM20 [VG20] como ponto de reunião de todos os sopros yang.

 

LINGSHU, CAPÍTULO 33

            “O homem tem um mar das medulas, um mar do sangue, um mar dos sopros e um mar dos líquidos e dos cereais. Eis os quatro que correspondem aos quatro mares”.

            Esta não é exatamente a mesma apresentação que encontramos no Lingshu [capítulo] 52, mas podemos falar também de quatro lugares importantes do corpo que são: o cérebro, o meio do peito, o Chongmai e o Estômago. Nós podemos também reconhecer os três campos de cinábrio, dan tian (丹田), ou os três níveis de reuniões fundamentais, chamados ancestrais, zong (): O músculo ancestral (zong jin 宗筋) que está localizado na parte inferior do abdômen, os sopros ancestrais (zong qi 宗氣) no peito e as circulações ancestrais (zong mai 宗脈) na região dos olhos e orelhas.

            O texto continua nomeando os mares e precisando os pontos específicos de cada um dos Quatro mares: “O Estômago é o mar dos líquidos e dos cereais. Seus transpontos[viii] estão em cima na rua dos sopros (qijie Estômago30) e embaixo alcança Zusanli (Estômago 36).

            Chongmai é o mar dos doze meridianos. Seus transpontos estão em cima no dozhu (Bexiga 11) e embaixo ele sai pela face superior e inferior do grande vazio (=Estômago 37 e Estômago 39).

            Danzhong (meio do peito) é o mar dos sopros. Seus transpontos estão em cima e embaixo do osso pilar (DM14 e DM15 [VG14 e VG15] ou Bexiga 10) e ele está na frente do renying (Estômago 9).

            O cérebro é o mar da medula. Seus transpontos estão em cima (DM20 [VG20]) e embaixo no fengfu (DM16 [VG16])”.

            As ruas dos sopros servem para a livre circulação, as subidas e as descidas dos meridianos, sangue e sopros e essências. Os mares são necessários para a concentração: são reservatórios para isso que circula através das ruas. Na natureza, os rios escoam para o mar e os mares se evaporam, formando nuvens que retornam aos rios, assim, há circulação.

            Considerando os pontos do cérebro, mar da medula, o Lingshu não menciona o DM20 [VG20], mas unicamente DM 16 [VG16] fengfu. DM 20 [VG20] é evocado somente pela sua relação como dossel (gai ). Um dossel é uma descrição exata para isso que é o crânio, que é uma cavidade que contém o cérebro. Um comentador afirma que pelo crânio ser o maior osso oco do corpo é que ele recebe a medula em seu interior e pode ser o mar da medula.

            O caractere de dossel é também uma forma de designar o Pulmão. RM 20 [VC20], situado no limite superior do Pulmão, é também chamado o dossel florido (hua gai 化蓋). Um dossel é capaz de atrair e de receber as influências vindas do Céu, isso que era sua função na China antiga: um chapéu, particularmente oficial, era como um pequeno dossel; o imperador tinha o maior, para atrair influências benéficas vindas do céu e as redistribuir ao seu povo. O Pulmão tem o mesmo movimento que o Céu no corpo do homem: ele distribui os sopros e os faz descer.

            O cérebro, por estar situado na caixa craniana e pela sua forma de dossel, penetra todas as influências vindas do céu. Desta forma, o nome dos pontos desta região é muito importante. Por exemplo, Bexiga 7 tem como nome tongtian, livre comunicação com o Céu. Assim, o cérebro é um lugar de reunião e de comunicação entre aquilo que sobe desde os Rins como líquidos e essências e aquilo que desce do Céu e escorre através do corpo. O comentador Zhang Zhicong afirma que o cérebro, mar da medula, comunica com o Céu em cima e comunica com as vias da água embaixo. A expressão chinesa para via das águas ou rio é composta por dois caracteres, o de água (shui ) e o de meridiano (jing ), mas os meridianos são justamente as grandes correntes que regulam o escoamento da água na superfície da Terra. Não distinguimos entre o corpo do homem e a Terra, entre a regulação das vias e da água sobre a Terra e aquela dos sopros no homem. A primeira serve de modelo à segunda.

            Nas antigas imagens da China, há os quatro mares nas quatro direções. Eles são o reservatório para cada qualidade de sopros: norte, sul, leste e oeste. Alguns comentadores estimam que o dossel, que é o osso do crânio, é também o lugar em que a conclusão da constituição do corpo é visível, pois a fontanela [“a moleira”] que está aberta quando o bebê nasce, pouco a pouco se fecha. É por isso que eles fazem do xinhui, DM22 [VG22], um ponto que governa as medulas. No nome deste ponto, o sentido de hui () é lugar de reunião, um lugar onde as coisas vindas de todas as direções se encontram. O outro caractere, xin, se escreve tendo a cabeça () à direita, e à esquerda o caractere para a caixa craniana (), que faz parte do caractere para cérebro, nao (). Acrescentamos o coração () abaixo para obter o caractere completo xin () o qual designa o osso que se encontra no topo da cabeça ou a fontanela [“moleira”] anterior e, mais abrangente, as fontanelas [“as moleiras”].

            Se consideramos a parte esquerda do caractere, formado pelo coração sob o crânio (), uma aproximação se impõe com o caractere para pensamento, si (), [uma vez que] a qualidade especial das atividades mentais é relacionada ao Baço. Quando os pensamentos giram em círculos, eles se tornam obsessivos. Contudo, se todos os espíritos vêm dos cinco zang e estão em um bom movimento, então, o pensamento gira bem, gira redondo. A etimologia tradicional para si (思)compreende o coração () sob o crânio (=), para indicar que a vitalidade vinda do Coração está em livre comunicação com o cérebro e o crânio. Assim podemos ver que o caractere para cérebro ou fontanelas e o caractere para pensamento possuem uma etimologia muito próxima. Alguns comentadores dizem que não devemos punturar DM22 [VG22] antes dos oito anos de idade. Oito é a primeira etapa para o desenvolvimento de um homem, segundo o Suwen capítulo 1, e é a idade em que os sopros dos Rins conhecem sua plena potência e plenitude.

            Depois da apresentação dos quatro mares, o Lingshu capítulo 33, nos fornece a patologia de cada um deles; a patologia é diferenciada segundo o vazio e a plenitude: “Excesso do mar da medula: se está alerta e robusto com muita força. Preenche-se abundantemente o número de anos atribuídos. Insuficiência do mar da medula: o cérebro gira (vertigem, nao zhuan 腦轉) e há zumbido nas orelhas, as pernas ficam doloridas e há perturbação na visão podendo chegar até a cegueira. A pessoa se torna lenta e cansada e deseja deitar e repousar”.

            A insuficiência do mar da medula é uma deficiência das essências e da luz das essências. O cérebro gira e a pessoa se torna incapaz de manter o equilíbrio, apresentando vertigens. Em chinês clássico, há uma diferença entre a cabeça que gira e o cérebro que gira. É como uma simples vertigem para a cabeça, no entanto, é muito mais profundo e mais sério para o cérebro. É talvez a fraqueza das essências que conduz a uma falta de firmeza e de força. A primeira manifestação no nível do cérebro é uma perda de equilíbrio. Depois há uma perturbação no nível dos orifícios superiores, os olhos e as orelhas. Há zumbidos nas orelhas e problema na visão. Ao mesmo tempo, as pernas ficam doloridas, pois a medula não nutre mais os ossos, que sofrem com o peso do corpo. Este sintoma nas pernas nos mostra bem que o cérebro é o mar das medulas; sua patologia não se restringe somente ao cérebro, ela se encontra em todo lugar em que as medulas deveriam estar fortes. Se os olhos não podem mais ver, é mais sério ainda e pode levar à cegueira, ao obscurecimento da luz. Se as essências são insuficientes, não há mais suporte para os espíritos e nem para os sopros. A pessoa se torna lenta e preguiçosa e deseja apenas se deitar, pois as medulas e os ossos estão fracos. Se as medulas não são suficientemente fortes, então, o mar das medulas é insuficiente e os ossos não podem mais serem firmes e sólidos. É impossível se sentir bem na posição de pé. Ao mesmo tempo, não se pode mais pensar, pois nem o cérebro, nem o Coração têm mais esta capacidade, visto que as essências não sustentam mais os espíritos.

            A descrição dada pelo excesso do mar das medulas não parece em nada patológica. O Suwen capítulo 1 apresenta a vida do homem e da mulher com ritmos específicos de 8 e 7 anos. Esses ritmos assinalam os períodos em que o homem e a mulher podem reproduzir uma outra vida, seu período de fecundidade que está em ressonância com os Rins e a potência de seus sopros e de suas essências. Huangdi questiona a propósito das exceções, e Qibo responde que há uma regra, mas ela suporta as exceções. Há isto que é normal e há isso que vem a mais. Ele explica que essas exceções possuem uma vitalidade grande e forte e que seus sopros circulam e comunicam livremente. O sopro dos Rins possui um excedente. Mas a norma permanece a norma. É o mesmo tipo de coisa que se passa com o excesso do mar das medulas. É um dom natural que está além da norma. As pessoas com este excesso – que é sobretudo uma abundância – são robustas, alertas, vivas e inteligentes e vivem até uma idade avançada. Vemos que o cérebro, mar das medulas, está em uma relação estreita com os Rins e a natureza original, a dotação pessoal, de cada indivíduo.

            Quais relações existem entre o cérebro e os pensamentos? Não há textos antigos que trate claramente esta relação. Mas sabemos que o meridiano do Coração estabelece uma relação direta entre o Coração e as conexões do olho no interior do cérebro. Isto é descrito no Lingshu capítulo 10. A conexão é dupla, uma é através do trajeto do meridiano shaoyin da mão, e a outra com seu trajeto conectivo, luo, que se origina no ponto tongli (Coração5), vai ao centro do Coração, depois se liga à raiz da língua e em seguida obedece as conexões do olho no interior do cérebro. Nesta citação, a expressão “o centro do Coração” é plena de subentendidos, pois é o vazio que é a morada dos espíritos.

            A explicação mais clara se encontra talvez no capítulo 17 do Suwen, o qual nós já abordamos previamente. A presença das essências luminosas, jing ming (精明, a luz nas essências), significa que as essências estão no cérebro, e que os sopros e as essências mais puras estão reunidas para permitir a influência benevolente dos espíritos, de maneira a produzir os aspectos mais sutis da vida humana pelos órgãos do sentido e pelos processos do pensamento. A relação entre o Coração e o cérebro é certa, mas em todos os textos, a psicologia, o intelecto ou a espiritualidade estão sempre em relação com o Coração. Nenhum texto diz que os espíritos vitais, os pensamentos ou as emoções pertencem ao cérebro. Mas se o cérebro não funciona, pois as essências não chegam ou estão muito pobres, os espíritos do Coração não podem se manifestar; deste modo, os pensamentos não são mais dignos desse nome.

            O Coração é a morada mais profunda e a mais importante para a unidade. É a residência dos jing shen (精神), os espíritos vitais, pois ele atrai a concentração especial das essências vindas dos outros zang. O Coração é também o mestre da psicologia, das emoções e dos sentimentos, ele é, por conseguinte, o mestre dos orifícios superiores e dos órgãos do sentido, pois agindo como um mestre, ele deve tomar decisões baseado nas informações vindas do exterior. Podemos utilizar esta unidade na esperança de ter um efeito curativo para os pacientes.

            O cérebro e os meridianos extraordinários são o protótipo da junção do yin e do yang mais igualmente da relação com a origem e a unidade original. No adulto, são os espíritos vitais do Coração que são responsáveis pela unidade do ser e de sua relação com sua origem. O cérebro pode ser considerado como uma conjunção desses dois aspectos da vida, a origem nos Rins e a consciência no Coração. O cérebro desempenha um papel na formação da pessoa, bem como na constituição ou na degenerescência cerebral.

            O pensamento ocidental considera a consciência ou o pensamento como existentes em si mesmos. Contudo, não há nada disso nos textos chineses antigos. O pensamento, a consciência, os sentimentos, a psicologia dependem do processo, e cada caractere chinês designa o movimento do processo que é o movimento de um sopro. É simplesmente este movimento que engendra os sentimentos, as emoções, etc. A “consciência” implica uma boa harmonia entre as essências e os espíritos no nível do Coração, no nível de cada zang e no nível do cérebro. No Lingshu capítulo 8, onde os aspectos do mental são apresentados, isto que é chamado pensamento, si () é uma das fases do processo. A patologia no domínio do pensamento é a parada do processo e a incapacidade de passar a próxima etapa que é a formulação de planos. Nesta perspectiva, o que é importante é que nada venha perturbar o vazio e a paz do Coração. O vazio e a paz estão principalmente no Coração, mas devem estar também no cérebro. Se algo de impuro invade o cérebro, então, há perturbação e doença e o tratamento principal é tratar o Coração, para liberar os espíritos do Coração e permitir sua comunicação com o cérebro.

            Em alguns textos de Zhuangzi há o emprego da expressão “residência dos influxos espirituais”, ling fu (). Ninguém sabe exatamente se esta expressão designa o Coração ou o cérebro. Fu () é o repositório que conhecemos; ling () designa as influências espirituais benéficas. Assim, ling fu é o lugar no qual, ou o mecanismo pelo qual, as mais sutis essências podem se concentrar para a radiância dos espíritos. Nada de impuro deve bloquear a liberação desta força interna espiritual.

            Lingtai (), é o nome de um ponto do Dumai [VG] situado no nível do Coração (DM10 / VG10), muito próximo de um outro ponto shendao (神道), cujo nome significa “a via dos espíritos”. Vimos que o cérebro armazena as essências provenientes dos Rins e da origem, mas as essências estão sempre se renovando através da nutrição e o trabalho do Estômago. Inúmeros textos, como o Lingshu nos capítulos 22 e 62, descrevem o movimento ascendente das essências a partir do Estômago e os sopros remontam ao Pulmão, aos ocos e orifícios da face e depois ao cérebro, a fim de revigorar e renovar as essências. Podemos explica-lo pela transmissão dos líquidos ye no rosto e nos orifícios conectados ao cérebro, ou dizendo que os sopros provenientes do Estômago sobem ao Pulmão, aos orifícios e ao cérebro. Não devemos esquecer que quando se fala de essência, fala-se de essências do Céu posterior, provenientes da assimilação dos produtos externos (nutrição e bebida), mas essas essências devem ser renovadas de acordo com o modelo dado pelas essências do Céu anterior. Se o Estômago funciona mal, o cérebro, os zang e os fu serão também deficientes.

 

SUWEN, CAPÍTULO 81

            O Suwen 81 define o cérebro como o yin. “Lágrimas e ranhos, é do cérebro; o cérebro, é o yin. A medula é a plena força (Chong ) dos ossos; é por isso que quando o cérebro se esgota, aquela produz os ranhos”.

            Isso significa que as lágrimas e secreções nasais são fundamentalmente da mesma substância que o cérebro; quando lágrimas e mucos escorrem, podemos constatar que a substância que forma o cérebro vem realmente do yin, das essências e dos líquidos. Se as substâncias escorrem muito, sofreremos de uma falta de essências no nível dos orifícios superiores e do cérebro. Estes orifícios estão, portanto, em comunicação com o cérebro e sua substância.

 

SUWEN, CAPÍTULO 52

            O Suwen 52 nos adverte: “Se punturarmos a cabeça na altura do ponto naohu (DM17 / VG17) e penetrarmos o cérebro, isto será imediatamente a morte”.

            Hu () é uma porta que não é muito grande como um portal, men (). Men é uma porta com dois batentes, como uma grande porta que dá para o exterior, mas hu é uma simples porta, como aquelas que existem entre as peças do interior de uma casa. Men () é uma porta que abre para algo que está em relação com a potência celeste. Hu () é utilizado para a mesma coisa, mas em relação com a Terra. Em certos templos, por exemplo, as portas que davam acesso aos espíritos ou aos altares dos espíritos seriam men, mas as passagens em direção aos altares dos espíritos da Terra seriam hu.

            A porta em direção ao cérebro (naohu 腦户) é uma pequena porta para receber as influências terrestres e um lugar para que alguma coisa a penetre. É um ponto de comunicação com o cérebro. Mas se você colocar uma agulha no cérebro, você pode matar seu paciente.

            Um comentário do século VIII diz que o ponto naohu está em comunicação com o interior do cérebro. Vimos isso com as essências do aparelho visual no meio da nuca, no Lingshu 80. O cérebro é o mar da medula, o centro e o ponto de comando das medulas. Aqui, os sopros autênticos (zhen qi 真氣) estão concentrados e acumulados. Desta forma, se uma agulha penetra o cérebro, os sopros autênticos se escorrem causando a morte. A razão pela qual o homem morre é que sua autenticidade e sua origem, proveniente dos Rins, que estão acumuladas no nível do cérebro, se escapam.

            Um outro comentador, Zhang Jiebin, no século XVI, disse também que o cérebro é o mar das medulas. Nele, o yang original (yuan yang 元陽), as essências e os sopros estão concentrados e acumulados. As essências e os sopros que são ligados ao yang original podem juntos subir para o topo do corpo, o cérebro, graças à pureza do yang original. Assim, se uma agulha penetra o cérebro, os sopros autênticos se escorrem ao exterior, acarretando a morte.

            Outro comentário fala do yang original que se escoa através deste ponto. Todos os comentários nos dão uma interpretação partindo da relação do cérebro com a origem dos Rins, a qual é também a origem da vida do homem.

            O Suwen capítulo 52 menciona muito os pontos proibidos. Se você punturar o meio do Coração, você morrerá depois de um dia, para o Fígado é depois de cinco dias, para os Rins seis dias, para o Pulmão três dias, para o Baço e a Vesícula Biliar depois de um dia e meio. E para o cérebro, é a morte imediata! É claro que os números são simbólicos.

 



[i] Aquela do Shuowen jiezi, conforme Wieger, em “Lições etimológicas” número 40.

[ii] É o mesmo caractere luo que designa a relação tomada por cada meridiano com a víscera do meridiano acoplado (por exemplo, a conexão do meridiano do Pulmão com o órgão Intestino Grosso); é também o mesmo caractere utilizado para as circulações conectivas entre dois pares de meridianos (por exemplo, Pulmão e Intestino Grosso) assim como para os pontos que lhes são associados (pontos luo).

[iii] Na descrição dos doze meridianos, esta relação de obediência shu é aquela que liga um meridiano com sua víscera própria (por exemplo, o meridiano do Pulmão com a víscera pulmão).

[iv] O meridiano do Coração, Shaoyin da mão, sobe até o olho e penetra nas profundezas do cérebro e do aparelho visual.

[v] O cérebro gira: tipo de vertigem em que se tem a impressão de que o cérebro se move e gira no interior da caixa craniana.

[vi] Quer dizer, o sistema visual no cérebro.

[vii] Sem dúvida o ponto yuzhen, Bexiga 9, segundo os comentadores.

[viii] Nota da tradutora: O termo utilizado em francês é “transpoints”, ele evoca um neologismo, conforme explicação fornecida no capítulo intitulado “o ponto shu ”, na página 277, do livro “Os 101 conceitos-chave da medicina chinesa”, de Elisabeth Rochat de la Vallée.



Foto de E Firmino: "Terracotta Daughters" - Instalação da artista Prune Nourry representando 108 meninas,de         tamanho humano, em terra.




ZHUANGZI ch. 5 - Trad. Jean Lévi

  O Tao deu-lhe a sua aparência e o céu a sua forma, porque deixaria que as paixões prejudiquem o seu corpo? Você se deixa distrair pelo mu...