sábado, 17 de outubro de 2020

A Harmoniosa Beleza da Saúde [i]

 

Elisabeth Rochat de la Vallée

 

Tradução: Mariana C. T. Scarpa

Revisão: Thiago Fortes Ribas

 

            Na China antiga, a saúde resulta de uma arte de viver. Não há arte mais bela que a de saber nutrir sua vida, desenvolver continuamente e totalmente suas capacidades, manter o gosto e o prazer em cada uma de suas atividades. A primeira coisa a ser considerada é saber como manter sua vida, aquilo que é bom e proveitoso, assim como aquilo que é nocivo e destrutivo. Um texto da metade do século III a.c. afirma:

“A Natureza (ou Céu: tian ) faz nascer o yin () e o yang (), o frio e o calor, a umidade e a secura, as mudanças das Quatro estações e as transformações de todas as coisas. Não há nada que não comporte um interesse e não há nada que não comporte uma perturbação.

O Sábio observa os arranjos do yin e do yang e discerne os aspectos benéficos de todas as coisas para conduzir sua vida.

É por isso que sua energia vital e espiritual (seu espírito vital: jingshen 精神) reside tranquilamente em seu corpo e ele vive por muito tempo. Viver longamente não é conseguir prolongar uma existência naturalmente breve, é simplesmente chegar ao fim de seus dias.

O esforço de chegar ao fim de seus dias consiste na arte de evitar as perturbações. O que seria evitar perturbações?

Se se penetra no corpo os cinco sabores em excesso, muito doce, muita acidez, muita amargura, muito picante, muito salgado, em suma, os cinco sabores em excesso, isso perturba a própria vida.

Se muita alegria, muita raiva, muitas preocupações, muitos medos, muita tristeza, em suma, os cinco sentimentos em excesso apoderam-se dos espíritos (jingshen 精神), isso perturba a própria vida.

Se os sete climas, quer dizer, um enorme frio, um enorme calor, ou secura, umidade, muito vento, chuva, nevoeiro vêm perturbar o princípio vital (a essência: jing ), isso perturba a vida.

Portanto, para nutrir sua vitalidade (yangsheng 養生), nada melhor do que conhecer os fundamentos. É, com efeito, esse conhecimento que permite evitar a chegada das doenças”[ii].

            Como discernir, como saber, o que convém? Um dos grandes modelos é considerar o que acontece na natureza. Assim, quando do Céu chega, cada um a seu tempo e na justa medida, o calor e o frio, a chuva e o vento, por exemplo, a safra cresce magnífica e abundantemente, a colheita permite a todos viverem até a próxima primavera. Mas se as chuvas não chegam no momento certo, se o frio ou o calor são demasiados ou duram muito tempo, a colheita é fraca e as pessoas morrem.

            Assim os grandes princípios que organizam os movimentos da vida são os mesmos em toda forma de vida: mineral, vegetal, animal, humana. Se, portanto, a medida e o respeito ao momento certo dão vida as plantas, eles são igualmente essenciais para a manutenção da vida humana. Concluímos disso que o discernimento deve se exercer afim de preservar esta medida e este respeito ao tempo, de seguir os ritmos naturais, em todos os domínios que tocam a vida. O texto citado distingue três momentos, que se encontram na medicina como três grandes causas de enfermidades: primeiro, aquele que penetra o corpo pela boca e o nutre de substâncias vindas da terra, ou seja, a alimentação. Em seguida, aquele que penetra o corpo pela pele e a respiração, todas as qualidades do ambiente e, por fim, aquele que surge do íntimo do ser humano, seus desejos e paixões, emoções e sentimentos.

            Comer de maneira equilibrada não é uma novidade, mesmo que seja sempre relevante. Entretanto, de acordo com o pensamento Chinês sobre a arte de nutrir a vida, regular a alimentação não é simplesmente uma questão de dosagem. Inicialmente, aquilo que comemos varia de acordo com as estações do ano, bem como de acordo com o lugar em que se vive, seu clima, suas grandes características[iii]; a variação atinge o próprio produto, mas também sua parte no conjunto; comer mais alimentos levando em conta o seu sabor de acordo com a época do ano, ajuda a manter no organismo aquilo que lhe corresponde, por analogia, as influências exteriores mais agressivas do momento. A variação concerne também ao tempo próprio da vida de cada um; a alimentação de um adolescente não é a mesma de um ancião. Aqui, mais uma vez, busca-se preservar ou restabelecer o equilíbrio do conjunto. Por exemplo, uma mulher antes e durante a menopausa evita uma alimentação que produza muito calor (salvo casos particulares) e durante suas regras ela comerá alimentos que nutram o sangue.

Desta forma, não se trata somente de alimentos, mas sim de sua mistura e de seu modo de preparação. É o resultado que porta qualidades nutritivas específicas que nutrem o conjunto da vida insistindo sobre um ou outro aspecto da vitalidade conforme todos os parâmetros de variações.

Vemos que a alimentação não pode se separar das estações, dos momentos do tempo, da qualidade do ambiente. Ela tampouco pode se separar das emoções. Toda emoção forte vai perturbar a digestão, perturbar e diminuir a qualidade disto que é assimilado pelo organismo. Toda emoção instalada no ser perturba igualmente sua fisiologia com efeitos inevitáveis, seja diretamente sobre a digestão e a assimilação, seja sobre o funcionamento dos órgãos que não aproveitam corretamente a manutenção que lhes é oferecida.

Um outro aspecto é o desejo de comer. Ele pode ser minado por condições fisiológicas ou psicológicas ou pelas duas ao mesmo tempo. Cabe a medicina intervir para tratar o que diz respeito a uma enfermidade. Aqueles que não estão doentes têm mais ou menos prazer de comer. Por que seria melhor ter prazer ao comer aquilo que comemos, independente daquilo que comemos, a condição de que seja algo que não contrarie o movimento da vida em si? Porque o prazer tomado assim é o sinal de um equilíbrio interior.

É o coração que sente prazer, não a boca; a boca é apenas um instrumento e um intermediário. Isso é válido para todos os demais órgãos dos sentidos pelos quais recebemos e degustamos isso que nutre nosso corpo e nosso espírito.

“É natural para as orelhas o desejo de escutar os sons, mas se o coração (xin ) não está contente (le ), podemos nos encontrar na presença das cinco notas que não escutaremos nada.

É natural para os olhos o desejo de ver as cores, mas se o coração não está contente, podemos nos encontrar na presença das cinco cores que não veremos nada.

É natural para o nariz o desejo de cheirar os perfumes agradáveis, mas se o coração não está contente, podemos estar na presença de suaves odores que não sentiremos nada.

A boca, por natureza, busca os sabores prazerosos, mas se o coração não estiver lá, podemos nos encontrar em presença dos cinco sabores que não degustaremos nada.

Desejar é encargo das orelhas, dos olhos, do nariz, da boca. Ser alegre (le ) ou não é encargo do espírito, do coração (xin ). Porém, o coração não saberia ser feliz se não há, primeiramente, harmonia e equanimidade (heping 和平), e o coração deve estar contente para que os sentidos experimentem seus desejos. A condição da felicidade se encontra, assim, na harmonia do coração (hexin 和心), cuja harmonia reside na prática da consonância.

A música (yue ) conhece a consonância, e o coração do homem deve ser consonante[iv]”.

            Este texto enfatiza inúmeras questões:

- O que entendemos por coração/mental/espírito? E qual é seu papel no sabor da vida?

- O que chamamos de alegria?

- O que é a harmonia que realiza a verdadeira beleza e permite a alegria perfeita?

 

 

O CORAÇÃO-ESPÍRITO

 

            Em Chinês, um único caractere (xin ) representa todos os aspectos da pessoa. O coração é uma realidade que embasa os domínios das emoções, do afeto, da psicologia, do intelecto, do mental, do conhecimento, da consciência, assim como da realização interior e espiritual. Ele é ao mesmo tempo o discernimento e isso que constrói (ou não) o discernimento, a verdadeira inteligência. Ele envia o sangue para todo o organismo e se faz presente em todos os lugares do ser que ele informa, com o que ele é e com o que ele contém. Ele está presente nos dedos quando apalpam, nos olhos e em todos os órgãos dos sentidos; ele percorre as vísceras e aflora a pele.

            O sangue que nutre o coração é o sangue elaborado pelo conjunto dos órgãos que lhe fornecem o melhor deles mesmos. Este sangue toma a cor e a tonalidade do coração; ele se encarrega disso que está no coração/afetos/mental e vai difundi-lo por todo o organismo, até os menores recônditos, bem como aos órgãos para os quais ele é nutrição e inspiração[v].

            Um coração calmo, vazio de preocupações e paixões, pulsa no organismo um sangue claro e fresco, capaz de estabelecer e manter por toda parte uma consciência corporal alerta e apropriada, a qual reage de maneira adequada aos estímulos exteriores; ele desenvolve o espírito vital que o permite ser o espelho da beleza do mundo.

            “Se a água tranquila reflete distintamente, o que diremos então do Espírito vital, que do coração repousado do santo, faz o espelho do Céu/Terra, o refletor dos Dez mil seres[vi]?”

            O sangue resultante da atividade de todos os órgãos nutre o coração. Esses órgãos são eles mesmos nutridos daquilo que entra no ser sob diversas formas: as substâncias da alimentação, mas também a sutileza daquilo que é visto e ouvido, etc.

            Tomemos um exemplo de um texto médico em que se descreve o terceiro mês de gestação. Vemos ali o extrato de um conselho fornecido à futura mãe:

            “Que ela busque a presença (a visão) destes que são nobres e realizados, ilustres e majestosos, preferindo os homens impecáveis e sérios; mas que ela evite a presença dos anões, disformes e nanicos, todos os homens de aparência feia e horrível que pareçam macacos”[vii].

            Feio é isso que não se pode desenvolver normalmente, de acordo com as normas da espécie, sob o plano físico, mas também sob o plano moral. Para além de um tipo de teoria das assinaturas, o raciocínio é o seguinte: o que é visto se imprime no coração e afeta a qualidade do sangue que nutre o feto; este último iria, então, sofrer deste defeito na qualidade do sangue da mãe, devido a complacência que ela tem ao olhar o que é feio.

            Estes conselhos tocam todos os aspectos da vida: aquilo que ela come, aquilo que ela pensa, as atividades que ela tem, a maneira como ela se realiza... tudo contribui para a retidão, ou seja, para não se desviar dos princípios naturais do organismo vital.

            O coração é discernimento; é ele que conhece uma sensação, percepção, sabor, como bom ou não, como desejável ou não. Quais são os critérios que fazem que uma coisa seja boa? Quando ela é boa, ela também é bela e proveitosa? Dizemos frequentemente que [uma coisa] é tão mais bela quanto é inútil. Mas isso não é verdadeiramente a perspectiva tradicional chinesa. Ela não define a beleza pela utilidade; ela estabelece um laço intrínseco entre a beleza e o que está de acordo com a ordem das coisas ou ordem natural. Não é equilibrado o coração ou o espírito que acha bom ou belo alguma coisa que não convém ao florescimento de sua própria natureza.

            Acharíamos bom um sabor porque ele é agradável ao gosto? Mas o que é isso que agrada? O que satisfaria uma tendência desequilibrada, um amor não moderado, uma preferência prejudicial, por exemplo, pelo açúcar? O bom sabor não seria aquele de um prato equilibrado, correspondendo àquilo que temos necessidades naquele momento? Pode-se replicar que o que convém não é necessariamente agradável ao gosto ou apetitoso; pode-se forçar a comê-lo para manter a própria saúde ou para se evitar ficar doente.

            O raciocínio que encontramos nos textos clássicos chineses é diferente[viii]. Se o que comemos (ou olhamos ou escutamos...) não é apropriado, o coração não encontra prazer apenas pela falta de discernimento; pois há um tipo de contradição interna entre o que fazemos penetrar no corpo e o que nutre a vida. Mas se ele reconhece o que convém à manutenção da vida, como não experienciaríamos um real prazer?

            Se comer – ou escutar, olhar, sentir, tocar – aquilo que nutre a vida não fornece prazer, é porque “o coração não está lá”. Ele não está lá porque está alhures, ocupado ou perturbado pelos interesses egoístas, os falsos saberes, as tendências desequilibradas que são construídas nele. Se o coração se desembaraça dos desejos imoderados, das ideias preconcebidas, desejos fantasiosos, seu discernimento fica mais claro, seu gosto é mais certo; ele degusta e saboreia o que é verdadeiramente bom e se regozija do que é verdadeiramente belo.

            Vê-se claramente a presença de um aspecto moral, mas é uma moralidade que é de fato uma adesão ao movimento da vida tal como é em si e por toda parte na natureza[ix]. Um contentamento profundo é o sinal que essa adesão se realiza verdadeiramente e cada vez mais espontaneamente. Quando se regozija disto que não convém à manutenção da vida, então:

            “As cinco cores cegam o olho – As cinco notas ensurdecem o ouvido – Os cinco sabores estragam a boca – Corridas e caçadas enlouquecem o coração – O amor aos objetos raros desvia a conduta[x]”.

            Tudo o que toca a atividade sensorial, de maneira mais geral, tudo o que toca a atividade vital, incluído as emoções e as qualidades do ambiente, é dividido e organizado segundo a doutrina do yin yang e dos Cinco elementos (agentes). O que o olho percebe é dividido em cinco cores conforme o modo de atividade vital[xi] que colore assim a realidade que se contempla. O mesmo vale para os outros sentidos. A relação com o coração é constante. A atividade própria de um elemento ressoa com um dos cinco órgãos fundamentais do homem. Deste modo, tudo o que o olho vê, a orelha escuta, o coração sente etc., afeta um organismo, seja por lhe confortar na sua boa atividade e de mantê-lo no fio certo da vida, seja para lhe desviar e gerar desordens que perturbam e enfraquecem a vitalidade.

            Assim, os órgãos geram corretamente a fisiologia, a psicologia, o funcionamento do mental etc. Eles nutrem um coração livre e perspicaz.

“Os cinco sabores, que se combinam de seis maneiras diferentes para formar as doze espécies de alimentos, se sucedem sem interrupção e cada um deles está por sua vez na base da alimentação.

As cinco cores, que servem para pintar os seis tipos de figuras sob as doze espécies de túnicas oficiais, revezam-se [no curso do ano], e cada uma delas por sua vez [predomina] e serve como a base das outras.

O coração do homem é o coração do céu e da terra; seu corpo é formado por uma parte mais sutil dos cinco elementos. Os cinco sabores variam sua nutrição; os cinco sons adulam sua orelha; as cinco cores ornamentam suas vestes. Estas três coisas mantêm e encantam a vida[xii]”.

            Neste caso, o prazer não se limita à satisfação dos sentidos, mas implica todo o ser, o coração; ele se torna alegre, sinal de equilíbrio, que resulta da boa manutenção da vida e que permite a boa manutenção deste equilíbrio. O coração alegre e contente circula melhor o sangue e inspira corretamente as atividades, os pensamentos, as sensações, os sentimentos...

            O bom odor, o odor agradável, como aqueles que se desprendem dos alimentos e licores oferecidos em sacrifício ou ainda de alimentos apetitosos e bem temperados, se diz em chinês xiang (). Este caractere é empregado para todo tipo de odor agradável, como as fragrâncias das flores, o aroma disto que é saboroso, as plantas odoríferas, aromáticas, o incenso... É também o odor disto que é delicioso, pois é conveniente para nutrir o corpo. É também, metaforicamente, o odor de uma conduta excelente, uma vez que ela é inspirada pela virtude; tem-se o odor da virtude. Do mesmo modo, o odor de uma mistura equilibrada e boa para comer suscita um prazer que faz salivar. É o odor da harmonia que mistura os odores disto que a Terra produz para a manutenção da vida. É o único odor que é agradável, seja porque ele promete o prazer dos sabores, ao trazer alegria ao olfato, seja porque a ausência de excesso retira-lhe a intensidade tão desagradável que caracteriza os outros[xiii].

            Uma festa para os sentidos não é apenas uma questão de hedonismo, de busca do prazer; é a harmonia que se percebe na expressão bem sucedida (prato a saborear, música a escutar, etc.), de acordo com a harmonia interior do coração que reconhece e se regozija desta harmonia.

 

HARMONIA INTERIOR E HARMONIA DO MUNDO

 

            A saúde é um equilíbrio que busca a harmonia (heping 和平). Não é um estado, é um movimento, uma sucessão de mudanças, de mutações. A harmonia (he ) é própria de cada indivíduo e se modula conforme a idade, as estações e as circunstâncias. É o que implica um equilíbrio (ping ) constantemente renovado disto que mantém a vida, uma harmonia entre todas as atividades físicas e psíquicas em si, como uma harmonia do indivíduo com tudo o que lhe é exterior, desde o seu ambiente até o conjunto do cosmos.

            Quando todos os elementos que compõem um ser estão bem equilibrados e proporcionais, cada um no seu lugar, eles se escutam corretamente uns aos outros, se regulam um sobre o outro, se acomodam naturalmente. Eles formam assim um conjunto no qual todas as partes estão perfeitamente integradas, em ordem e em concordância. Esta composição que funda a unidade de um ser e sua união com o ambiente natural e cósmico é a harmonia.

            O mundo natural é por si mesmo belo, pois nada interfere no desenvolvimento perfeito de sua ordem; as irregularidades não mancham a beleza, elas fazem parte dela[xiv].

“O Céu-Terra, que possui a suprema beleza, não fala dela; as quatro estações, que procedem segundo leis claras, não a discutem; os Dez mil seres se realizam conforme os princípios constitutivos (li ), mas eles não os expõem.

O Sábio é aquele que volta a fonte da beleza do Céu-Terra e que penetra os princípios constitutivos (li ) dos Dez mil seres.

Assim o homem perfeito é sem agir (wuwei 無為), o grande sábio não se agita; é que eles contemplam (guan ) o Céu-Terra”[xv].

            A beleza é a harmonia, ou seja, quando cada um está em pleno desenvolvimento de sua vida tal como ela deve ser naturalmente e não segundo uma ideia pessoal ou um desejo próprio. Uma árvore é bonita não porque ela corresponde a um ou outro critério humano de beleza definida por uma escola ou um grupo de indivíduos, ela é bonita porque ela recebe suficientemente aquilo que nutre a sua natureza de árvore, que a faz crescer utilizando todos os seus recursos, e condições do terreno e das circunstâncias. Mesmo apresentando formas diferentes, sua beleza vem sempre da conformidade à organização vital subjacente a toda forma de vida.

            A beleza é a beleza das coisas naturais, como elas são naturalmente. Um corpo saudável é bonito e ele se integra perfeitamente e facilmente no seu ambiente, ele se movimenta com graciosidade, pois o espírito não o perturba, seus movimentos são belos pois são justos, de uma justeza não calculada e sim espontânea, que vem do coração.

            Um corpo belo de formas, mas habitado por um espírito doentio se entorta psiquicamente, se deforma, pois ele não sabe se manter bem e isto se vê no corpo, ele se move mal e sem elegância, mesmo se seus gestos são precisos e exatos.

 

O CALDO NUTRITIVO

 

            O que está posto à mesa nutre a vida quando é bom e belo. E, por conseguinte, nutre o discernimento do coração, a atitude justa. O caldo é um exemplo da harmonia.

Um exemplo da harmonia é o caldo. A água, o fogo, o vinagre, a carne picada e conservada, o sal, as ameixas com o peixe cru, [ajudam a formar o caldo]. Aquecemos tudo. O chef de cozinha combina os diferentes ingredientes, os alimentos na proporção desejada segundo seus sabores, acrescenta o que falta a uns misturando-os com os outros, diluindo aqueles que tem em excesso ao suavizá-los com os outros. Um príncipe sábio, ao comer este caldo, alimenta suas paixões (seu coração, xin ) em equilíbrio (ping ).[...]

Os antigos soberanos combinavam os cinco tipos de sabores e conciliavam os cinco sons, afim de estabelecer o equilíbrio das paixões e tornar a administração perfeita. Isso se encontra tanto nos sons quanto nos sabores. O sopro do homem (qi ), os dois modos de representação mímicas (civil e militar), os três tipos de cantos, as matérias de todos os países, os cinco sons, as seis tubas musicais, as sete notas, os ventos das oito direções, os cantos relativos aos novos tipos de trabalho, todas as coisas reunidas formariam uma música perfeita. O distinto e o indistinto, o pequeno e o grande, o curto e o longo, o animado e o calmo, o triste e o alegre, o forte e o fraco, o lento e o rápido, o alto e o baixo, o exterior e o interior, o denso e o límpido se combinam entre si. O sábio, com o ouvido atento à música, adquiriria o equilíbrio das paixões. Com o coração bem regulado, as virtudes estariam em harmonia”[xvi].

            A harmonia mantém a vida mental e moral através da vida corporal.

 

A MÚSICA

 

           A música é um outro exemplo de harmonia. Qual é o desejo do músico? Que o conjunto seja harmonioso para que a beleza resplandeça[xvii]. Mas isso só pode ser alcançado se cada um seguir a partitura, se conformando à natureza de seu instrumento e tocando em função dos momentos, sem exagerar em nenhum traço de intensidade ou de rapidez etc. Ainda que a exaltação interior seja grande, é da medida e da consonância que surge a beleza. A exaltação, a potência do sentimento, não desvia a vida de seu eixo.

            Ao contrário, mesmo se a vida enfraquece a ponto de se esvaecer, como no caso de uma pessoa idosa, ela pode mantê-la saborosa. Tal envelhecimento pode ter um prazer verdadeiro e profundo ao saborear apenas um bocado de peixe delicado, isso se não houver nenhum lamento de não poder comer mais que o venha perturbar e se uma consciência livre pôde ser preservada.

“A origem da música remonta a tempos longínquos. Nascida da medida e da quantidade, ela se enraíza no Grande Um. [...]

Desenvolver (cheng ) a música demanda diferentes meios, e o primeiro de tudo é moderar (jie ) os desejos e paixões. É quando nem uns nem outros se tornam aviltantes que a música pode ser plenamente tocada. [...]

A grande música é aquela que alegra Príncipes e súditos, pais e filhos, grandes e pequenos, e que os tornam felizes. Este júbilo nasce no seio da equanimidade do espírito (ping )”[xviii].

“O mesmo acontece com a música dos tempos de desordem. Ao fazer soar [os instrumentos de] madeira e de pele como o trovão, [os instrumentos de] metal e de pedra como o relâmpago, e [os instrumentos de] seda e de bambu assim como os cantos e as danças como os gritos, arriscamos aterrorizar o coração e os sopros vitais, perturbando os olhos, orelhas e subvertendo a vida em si mesma. A música que se faz desta forma não traz felicidade. Porque quanto mais a música tende ao excesso, mais o povo se inquieta, mais o país se encontra em desordem e o Soberano se avilta. Desta forma, a natureza mesma da música se perde”[xix].

            A música de perdição se opõe à música que nutre a vida, pois ela mantém a retidão. A música é bela quando ela vem de um coração que moderou suas paixões; a bela música ajuda a moderar as paixões. A medida não é uma restrição, é a maneira de exprimir justamente. O transbordamento ou a alteração não agrega nada. A música nutre a vida na medida em que ela evita os excessos de paixão que a destroem ao trazer a desordem nas diversas atividades psicológicas e mentais. Cada nota ou tonalidade musical estando associada com um dos Cinco elementos (agentes), [faz com que] um som particular entre em ressonância com um órgão e a harmonia do conjunto ajude a recolocar ou manter sua atividade no fio certo da vida.

“Os sons e a música são isso que agita e abala as artérias e as veias (as circulações do sangue, xue mai 血脈); que atravessa e percorre os espíritos vitais (jingshen 精神) e que dá ao coração a harmonia e a correção (he zheng xin 和正心)”[xx].

Ou ainda:

“Enquanto uma música equivocada causa a impressão (gan ) sobre o homem e ele responde (ying ) com impulsos rebeldes (ni qi 逆氣), os quais, tomando forma, desencadeiam desordens (luan ), por sua vez, uma música correta também causa a impressão sobre o homem, que a responde por impulsos dóceis (shun qi 順氣); esta docilidade toma forma e a ordem (zhi ) segue. O canto e a harmonia (he ) que ele engendra se respondem (ying ) tomando forma tanto para o bem como para o mal (shan e 善惡)[xxi]”.

De uma maneira geral, existe uma sedução dos sentidos que ao mesmo tempo engana a real beleza e prejudica a vitalidade.

“Deixar-se seduzir pelos sabores e odores, deixar-se corromper pelos sons e cores, perder-se no contentamento e na raiva, não se preocupar com as consequências dos seus atos, eis o que compõe os sopros perversos (xie qi 邪氣)[xxii]. No entanto, esses dois tipos de sopro se prejudicam mutuamente, assim como, em cada um, a natureza profunda (xing ) e os desejos trazem prejuízo (yu ); eles não podem coexistir e, se um prosperar, o outro padece. Assim o santo conforma a sua natureza e abole em si todo o desejo. O desejo e as paixões vêm disso que nas cores é agradável aos olhos, os sons às orelhas; os sabores à boca e que, sem fazer a partilha entre o que é nocivo ou benéfico, os sentidos experimentam um grande prazer ao seu contato. No entanto, esses três sentidos se perturbam e disputam uns contra os outros quando não comemos somente para o benefício do corpo, quando prestamos as orelhas à harmonias insólitas e quando repousamos os olhos sobre o que a natureza reprova, de maneira que é preciso os regular e os arbitrar, esta é a função do coração[xxiii]”.

A harmonia se cultiva em si através da medida e do respeito ao momento. Não seria isto o que podemos observar em diversas obras de arte?

Não podemos obter em si e não podemos provar (em si e fora de si) senão pela cultura da medida e do ritmo em todas as atividades interiores e exteriores da vida. É igualmente assim que se mantém a boa saúde e a longevidade; o prazer é naturalmente tomado por aquilo que melhor convém à vida.

 

A ALEGRIA

 

            Em chinês, o caractere () quando pronunciado como le significa a alegria e pronunciado como yue significa música. A harmonia com o universo (que apenas se desenvolve pela harmonia em si) é a melhor maneira de provar a alegria. A alegria se satisfaz com pouco, ela só necessita estar em acordo. A alegria não é uma excitação. Ela é a marca do equilíbrio perfeito e da harmonia em si e com o universo. Na medicina, a ausência de alegria é um sinal patológico que assinala que o indivíduo não está em acordo consigo mesmo nem com a natureza, pois ele se distancia dos princípios de sua vida; seu coração vai rapidamente manifestar outros sinais clínicos deste mal estar.

            A alegria não é uma emoção; ela está para além disto que nos emociona ou nos agrada; ela é um sentimento profundo que vem do fato de que a vida em nós segue seu caminho sem ser desviado pelos desejos ou pelas atividades contrários à nossa natureza própria. A alegria que experimentamos é esta que se encontra no âmago de nós mesmos quando somos um com o Céu, com a ordem do mundo que se exprime nos movimentos regulares dos sopros. Ela é como a música harmoniosamente composta e executada, quando cada instrumento da orquestra, dócil à baqueta do maestro, toca apenas pela harmonia do conjunto e vive através dela. Aqueles que não se conduzem desta forma, impedem a alegria de se desabrochar neles.

“... a alegria não está na riqueza e honras, ela reside na Virtude que cria a Harmonia. [...]

Falamos de alegria. Seria preciso residir em Jingtai ou Zhang hua, flanar pelo parque de Yunmen, sobre o terraço de Shaqiu, regozijar seus ouvidos com os ares de Jiushao e de  Liuying, seu palácio de patas de ouro, barbatanas de tubarão, legumes perfumados, corridas em carroças em estradas largas, disparar os martins-pescadores?

Isto é verdadeiramente a alegria? Não. Para nós, a alegria é o que o homem obtém disto que ele deve possuir. Obter isto que se deve possuir, não é se regozijar de luxos e se afligir com a pobreza. É antes se fechar com o Yin e se abrir com o Yang...

Portanto, uma vez que se possui a si mesmo, o pé de uma árvore alta, o buraco de uma caverna são suficientes para nossa felicidade; mas se não se possui a si mesmo, podem nos dar todo o Império como casa e os Dez mil seres como escravos e isso não será suficiente para manter a nossa vida. Quem, ao contrário, pode alcançar a Não alegria, encontra a alegria em tudo. E quem encontra a alegria em tudo alcança seguramente a Alegria perfeita”[xxiv].

 



[i] Texto extraído do livro: “Esthétique du quotidien en Chine”. Organização de Danielle Elisseeff. Editora IFM/Regard. 

[ii] Lüshi Chunqiu (氏春秋), Primavera e Outono de Lü Buwei, III, 2, tradução I. Kamenarovic, Paris, Le Cerf, 1998.

[iii] Assim, o Liji () Livro dos ritos (capítulo “Wangzhi 王制” Regulamento Real), especifica: “O temperamento dos homens colocados em diferentes estabelecimentos varia necessariamente conforme o clima, se ele está frio ou quente, seco ou úmido. As formas do corpo não são as mesmas nas vastas planícies, tampouco nas margens dos grandes rios, e os costumes e hábitos são diferentes. As índoles eram em uns: firmes, em outros fracos, outros leves, outros pesados; uns lentos e outros vivos. A preparação dos alimentos variava, os instrumentos e os utensílios eram diferentes; as mesmas roupas não eram convenientes em toda parte; instruía-se diversas tribos, sem mudar seus hábitos, regulava o governo, sem mudar isto que convém a cada um”.

[iv] Lüshi Chunqiu, op. cit., V, 4.

[v] Na medicina chinesa clássica, uma grande parte disto que chamamos funções cerebrais e nervosas dizem respeito ao sangue.

[vi] Zhuangzi (荘子), capítulo 13, obra de inspiração taoísta escrita entre os séculos IV e I A.C.

[vii] Zhubing yuanhou lun (藷病源候論): Tratado sobre a origem e os sintomas das doenças; compilação médica concluída em 610 por Chao Yuanfang (巢元方).

[viii] É claro que alguns medicamentos são muito desagradáveis ao paladar; mas toma-se apenas quando há um desequilíbrio interno acentuado, que é preciso tratar rapidamente.

[ix] Mesmo se na realidade de uma cultura, essa moralidade pode assumir valor por si mesma e se separar do natural.

[x] Laozi, Dao De Jing: Livro da via e da virtude (1977), capítulo 12, tradução e apresentação de Claude Larre, Paris, Desclée De Brouwer, 2002.

[xi] É isto que podemos chamar de sopro ou “qi” (). Por atividade, entendemos aqui a ação que o repouso tem em sua alternância e seus ritmos.

[xii] Liji, Memórias sobre os decoros e as cerimônias, capítulo “Liyun” (“Mudanças introduzidas no cerimonial”), tradução S. Couvreur, Paris, Cathasia, 1950.

[xiii] Odor rançoso, pútrido, de queimado, de sangue, por exemplo.

[xiv] “Uma brisa é uma pequena harmonia; uma rajada de vento é uma grande harmonia” (Zhuangzi, op. cit., capítulo 2).

[xv] Ibid., capítulo 22.

[xvi] Chunqiu Zuozhuan (春秋左傳), “Zhao” 20, comentário do senhor Zuo à: A crônica do principado de Luo, tradução de S. Couvreur, Paris, Cathasia, 1951.

[xvii] “Os músicos são atentos a uma única coisa, que é a de concordar entre si de maneira duradoura. Os instrumentos são, assim, regulados uns pelos outros e podem tocar em conjunto de maneira a dar plenamente aos ouvidos isso que é a cultura”. (Xunzi, Escritos do Mestre Xun, capítulo 20, tradução de I. Kamenarovic, Paris, Les Belles Lettres, no prelo 2016).

[xviii] Lüshi chunqiu, op. cit., V, 2.

[xix] Ibid., V, 3.

[xx] Shiji, As memórias históricas, capítulo 24, tradução E. Chavannes, Paris, Adrien Maisonneuve, 1967.

[xxi] Xunzi, op. cit., capítulo 20.

[xxii] Esses mesmos sopros perversos são os agentes patogênicos no vocabulário da medicina chinesa.

[xxiii] Filósofos taoístas, Huainanzi (淮南子), tomo II, capítulo 14, (tradução N. Pham-Michot), C. Le Blanc e R. Mathieu (dir). Paris, Gallimard, coleção “La Pléiade”, 2003.

[xxiv] Os grandes tratados de Huainanzi (capítulo 1, 7, 11, 13 e 18), (1993), tradução Cl. Larre, I. Robinet, É. Rochat de la Vallée, Paris, Le Cerf, 2012, capítulo1.




 


ZHUANGZI ch. 5 - Trad. Jean Lévi

  O Tao deu-lhe a sua aparência e o céu a sua forma, porque deixaria que as paixões prejudiquem o seu corpo? Você se deixa distrair pelo mu...