terça-feira, 15 de outubro de 2019

O Padre Jesuíta Claude Larre: a espiritualidade Taoísta à luz da Fé Cristã


Qingya MENG
Université Paul-Valéry Montpellier III


Tradução de Hélvio Lima


O Padre Claude Larre (1919 2001) exerceu, por toda sua vida, o papel de transmissor da língua e cultura chinesa. Tradutor do chinês para o francês, ele começou a participar, a partir de 1966, da redação do célebre Dicionário Ricci[i]. Publicado pela primeira vez sob a título de Dictionnaire français de la langue chinoise (ou Patit Ricci[ii]), em 1976, e foi publicado em 2001 sob o título Grand Dictionnaire Ricci de la langue chinoise (ou Grand Ricci[iii]).
Nesse mesmo tempo, no início dos anos 60, ele optou por estudar Taoísmo na École pratique des Hautes études de París. Em 1969 ele defende a tese de Doutorado dedicada ao estudo do Tratado VII do Huainazi (um tratado Taoísta escrito no Séc. II a.C.). A partir dessa hora as atividades de tradução irá ocupa-lo até o fim de sua vida.
Sua formação religiosa começou em 1939, no noviciato em Laval. Em 1949 obtém a Licenciatura em Letras Clássicas em Paris; então decide ir a Pequim para continuar os estudos da língua Chinesa. Então ele estava com 28 anos. Dois anos depois ele se instala na Congregação Jesuíta de Xangai, onde fica até 1952, data em que ele é ordenado sacerdote (abril de 1952), depois de alguns meses ele foi expulso (junho de 1952) da China Maoísta.
Posteriormente ele passou um ano no Japão, de 1956 a 1957, então reside em Saigon[iv], no Vietnam, de 1957 a 1966, onde ensina chinês na Universidade. Em 1971 funda o Instituto Ricci para Estudos Chineses[v], em Paris, em colaboração com o Instituto Ricci de Taiwan, para onde viaja regularmente entre 1970 e 1990. Ele retornou a China continental em 1984, depois de 32 anos de sua expulsão. Em 1989 ele fará sua última viagem a Pequim e Xangai;

Assim, Claude Larre, construiu um caminho existencial bem pessoal, dedicado a sua Fé Cristã e a tradução de alguns textos fundamentais do Taoísmo. Em Trois racines dans un jardin[vi], texto autobiográfico editado em 2000, ele escreve:

“E aqui eu explico para mim mesmo porque não me desviei (...) de um projeto inicial que pode ser resumido simplesmente: saber chinês o suficiente para entender o que está por trás do discurso comum, revelar o enraizamento de um povo em sua História e essa História de vinte ou trinta séculos[vii]
Em 1977, alguns meses após a morte de Mao, ele publicou uma tradução do Dao De Jing, o Livro do Caminho e da Virtude[viii] de Laozi, um texto Taoísta que data de 600 a.C.
Este artigo pretende entender como, através da tradução, Claude Larre questiona o pensamento Espiritual do Tao à Luz de sua Fé Cristã.
Deve-se notar que o Tao Te King não é "um clássico", isto é, não faz parte dos escritos clássicos decretados pelo Estado. Estes são, em princípio, próximos ao relacionados com o pensamento da Escola Confucionista e fazem parte do programa de exames imperiais de diferentes dinastias. Mas, como nos lembra o padre Benoît Vermander, jesuíta francês, sinólogo, atualmente professor da Universidade Fudan em Xangai, a quem eu consultei sobre este ponto, o Tao Te King "tem sido considerado um clássico", é "Incluído como tal em algumas classificações e sempre foi comentado[ix]"
Do ponto de vista histórico, Claude Larre realizou sua tradução a partir da versão do Tao Te King de Lao Tse, apresentada e comentada por Wang Bi (226-249), intelectual e filósofo chinês do Século III de nossa era. Os comentários de Wang Bi ainda é uma das principais referências no século XXI.
A primeira edição do Tao Te King de Claude Larre foi publicada em 1977. Este livro foi reeditado em 1994, em 2002 e em 2015. A versão utilizada nesse artigo, trata-se da terceira edição publicada em 2002.
Sob um ponto de vista formal, o livro de Claude Larre é único: a página da esquerda é dividida em duas colunas, na primeira coluna o texto original em chinês e na segunda é inserido os comentários de Claude Larre. Na página da direita é apresentada a tradução para o francês de cada capítulo, que totalizam 81. Deve-se acrescentar que 17 caligrafias chinesas são reproduzidas no livro, correspondendo a certos termos Taoístas.

Os comentários estão nas páginas da esquerda, precedidos dos textos originais chineses e a tradução estão nas páginas direitas.

A priori, nada do Taoísmo sugere princípios do Cristianismo. De um modo geral o Taoísmo se refere a um conjunto de princípios morais e filosóficos e que encorajam os indivíduos a respeitar a Lei do Céu. Este é o princípio do Tao, traduzido como “Caminho”.
O Homem se reporta ao Universo; ele se realiza através da harmonia que se estabelece entre ele e a Natureza, a fim de se unir com o Céu e, assim, valorizar a teoria do não-ação com o propósito de sujeitar as atividades humanas a Lei Imutável do Natureza.
Em outras palavras, o homem é parte de uma ordem cosmológica que coloca o Céu como a primeira autoridade do Universo, mesmo com o céu e a terra[x], e o homem, que se une numa harmonia perfeita e fomenta uma relação tripartícipe, em que um completa o outro.

Segundo o sinólogo Marcel Granet (1884 – 1940), se o Céu ultrapassa o Homem é apenas porque ele é “o regulador supremo da ordem Natural, ele é [...] o autor da continuidade dos fatos da Natureza”[xi].
A partir dessa tradução, Claude Larre escreve um texto composto de comentários, que primeiro vamos abordar como discursos.
Em regra geral, um tradutor é usado para explicar ou se explicar sobre a tradução. Ele faz isso usando notas de rodapé ou de final para apresentar informações adicionais, indicar pontos de vista pessoais para escolha de alguma expressão, dar uma opinião crítica sobre um fragmento da tradução, etc.
Claude Larre não dá notas desse tipo em sua tradução.
Por outro lado, os comentários feitos por ele sobre cada capítulo constroem outro texto, diferente do texto traduzido, mas, em última instância, dependente dele.
Concernente ao texto, o Padre Benoît Vermander afirma que “Lao Zi” é considerado (in lato sensu) “como um (Jīng) o que explica porque é o objeto de um comentário”. O termo chinês (Jīng) designa um livro canônico.
Mais precisamente, sempre de acordo com Vermander, Claude Larre “assume a forma de (Zhuàn) que é, na China, a forma dominante do Discurso Filosófico” a partir da Dinastia Han (206 a.C a 220 d.C) este termo chinês (Zhuàn) designa em português[xii] exegese[xiii].

Na prática o comentário de Claude Larre equivale a ato de interpretação, que nos trás informações adicionais, o que Jacques Derrida, em seu livro intitulado De la Grammatologie nomeia um texto de “ordem suplementar” que é “de natureza aditiva”[xiv].
Do ponto de vista linguístico, Claude Larre usa algumas palavras-chave para traduzir o que ele considera ser um elo natural entre o Taoísmo e o Cristianismo.
Por exemplo, o uso do advérbio “mesmo[xv]” no comentário do Capítulo 1 usa esta afirmação: “o tom é ao mesmo tempo caloroso e distante, a preocupação das pessoas, o amor a simplicidade, a pobreza, a naturalidade, faz de Lao Zi uma das maiores obras espirituais. Da mesma forma que há uma imitação de Jesus Cristo, existe uma imitação da Ordem Natural: Lao Zi[xvi].
No comentário do capítulo 2 é o advérbio “similarmente” que aparece na frase: “os santos (que significa os reis da antiguidade) sem querer, estão no alto, como o Céu, para proteger e animar todos os seres; eles estão abaixo, para dar suporte, para os nutrir e servir. O pensamento judaico-cristão mostra, similarmente, a Sabedoria de Deus e entre os homens”[xvii]
Há também outro exemplo com o adjetivo “semelhante” no capítulo 44: “os aspectos de ascetismo e misticismo são tão próximos que se podem encontrar muitas formulações semelhantes em Lao zi e no Novo Testamento[xviii]”.
A expressão “próxima o suficiente” no comentário do capítulo 7 traz uma nova nuance na tentativa de aproximação: “nós também não devemos querer viver por viver; uma máxima próxima o suficiente ao conselho evangélico: quem vai perder a vida (por minha causa) vai mantê-la para a Vida Eterna[xix]”.
Por fim no comentário do capítulo 37, o emprego do advérbio “como” vem sugerir um tipo dessemelhança: “o Livro do Caminho e da Virtude é como a Bíblia. Ele é totalmente preenchido com uma presença formidável cuja ação está acima dos conflitos humanos; esta é a sua grandeza[xx]”.
Outra variante desse sistema de correspondência aparece no comentário do capítulo 8 que compara a Arte de governar dos Santos Reis da antiguidade à imagem do movimento da água, que flui adaptando-se às situações através de seu curso; o comentário do lado, Claude Larre cita, como Taoísta as Virtudes da Fé Cristã: “aqui encontramos a Virtude bíblica da fidelidade. Seus dois aspectos são sinceridade e objetividade[xxi]”. Por esta citação, Claude Larre mostra a que ponto ele lê o texto Taoísta à Luz da palavra Cristã.
Então, sob o ponto de vista de seu enunciado, Claude Larre começa a demonstrar como comum certos pontos de vista, entre o Taoísmo e o Cristianismo, usando ferramentas linguísticas. Então, gradualmente, ele desenvolve seu anunciado atribuindo-lhe a força da sugestão. Para isso ele vai a adotar o método de justaposição no nível de expressão. É isso que vamos tentar mostrar agora.
Nos enunciados, a justaposição procede no deslocamento de uma ideia para outra sem a ajuda de conexões linguísticas.
Veja o exemplo que consta no comentário do capítulo 44: “o Taoísmo ignora a salvação em Jesus Cristo, ele não a contradiz em lugar nenhum[xxii]”. Na primeira parte da oração Claude Larre expões a diferença entre o Taoísmo e o Cristianismo. Ao saber do desconhecimento de Jesus, depois utilizando uma simples pontuação, a vírgula, ele se desloca imediatamente para uma outra afirmação de que os princípios do Tao não conflitam com os significados das palavras de Jesus.

A Retórica de Claude Larre, portanto, reflete uma conexão entre as duas Espiritualidades.

Assim no comentário do capítulo 21 o tradutor denota uma espécie de mimetismo entre o Tao e o prólogo do Evangelho de João composto de 18 versículos: “alguém poderia pensar em uma paráfrase do Evangelho de João[xxiii]”. O autor observa uma identidade da forma dos dois enunciados, semelhante a encantamentos no sentido religioso do termo, com uma métrica, uma assonância e exclamação chinesa. Ele se coloca do ponto de vista fenomenológico.
A esse respeito, Claude Larre, opta por estabelecer relações entre elementos que geralmente não se coincidem. De um lado os Princípios do Tao, do outro lado referências bíblicas como o livro de Gêneses e de Êxodo[xxiv],assim como o Salmo 31[xxv]. Ele também escolhe referências nos Evangelhos: O Evangelho de João, ao qual ele se refere 4 vezes[xxvi], o Evangelho de Lucas, 3 vezes[xxvii], o Evangelho de Mateus, 5 vezes[xxviii]. Ele também cita a Epístola de Paulo[xxix].
Além das palavras dos Apóstolos de Jesus, Claude Larre utiliza em seu corpo de referência a imagem de Francisco de Assis[xxx], assim como o do Rei Salomão[xxxi].
Quanto aos mistérios cristãos, ele cita o da “Incarnação[xxxii]” e o do “Natividade[xxxiii]
Como o poeta François Cheng (1929 - ), um amigo de Claude Larre, ele mesmo convertido ao Cristianismo[xxxiv] escreve no prefácio do Tao Te King: “as palavras do autor, mesmo que ela faça algumas comparações (entre o Taoísmo e o Cristianismo), não é para tirar a doutrina de Lao Zi à sua própria crença[xxxv]”.
Ao procurar aprofundar sua fé em Deus, ele tenta aprofundar o seu conhecimento no pensamento Taoísta, pensava extrair elementos que confirmassem o seu ponto de vista, que o Caminho do Deus é natural e está inscrito na ordem das coisas no mundo.
Claude Larre destaca pontos de conexões entre o Tao e o Cristianismo e mostra um caminho espiritual, ou "a subida no Carmelo" para usar as suas próprias palavras, que não podem ser emprestadas "pelo grande número" que ele escreveu. Ele então lembrava as palavras que Jesus falou no Evangelho de Mateus, (7:14) e no Evangelho de Lucas: “estreita é a porta que se abre no Reino[xxxvi]
Porque para Claude Larre o Tao é como o Reino[xxxvii]. Estes traços de união entre o Taoísmo e o Cristianismo existem de maneira natural, além das diferenças, que eles conferem ao pensamento de sua parte de realismo. O sábio taoísta, como o místico cristão passa aos olhos do mundo por ser um indivíduo: “anormal, um excêntrico, enquanto isso é precisamente aquele que é normal, já que ele segue a norma, e não um ser excêntrico, pois ele está no Centro”[xxxviii]
Não basta ficar na superfície do texto, é necessário aprofundar os questionamentos. Assim a última frase dos comentários, no capítulo 81 do livro, diz: “assim a supressão é o agir mais próximo do não-agir. Quanto a Jesus, ele ficou em silêncio”[xxxix].
Segundo o Padre Vermander, a quem também perguntei sobre o significado a ser atribuído a estas duas frases justapostas, estas se parecem: “refere a ‘Kenosis[xl]’ (自我空虚[xli]) de Jesus na hora de sua Paixão. Jesus é silencioso sob os insultos e o ‘Silêncio da Cruz’ é o ato Supremo de Deus. Claude Larre, assim, vê a expressão final do '无为[xlii]' (não-ação) de Jesus em sua Paixão: Ele perece, ele apaga sua Divindade, e perecer é seu modo de agir”.
O Caminho do Tao visa atingir esse estado de não-ação, já citado do início do artigo. Claude Larre cria de maneira muito sutil, um entrecruzamento entre esses dois pensamentos, um taoísta que valoriza o Vazio, a Vacuidade, o “eu não sou nada” e o outro, cristão, que celebra os princípios existenciais da humanidade, de privação e silêncio, colocados no caração do conceito da Kenosis de Deus.
Em outras palavras, o caminho místico é o ponto culminante do encontro entre um Taoísta e um Cristão. Segundo Claude Larre, “ser um místico é ocupar um lugar à parte na vida da sociedade (...) o que é verdade no Taoísmo, é o mundo espiritual[xliii]”.  
A partir dessa qualidade mística, comum ao taoísta e ao cristão, o raciocínio que Claude Larre consiste em aproximar a experiência do Vazio, que é parte do pensamento Taoísta, a experiência de fidelidade ao significado da Fé, da confiança em Deus, contida nos evangelhos, os ensinamentos de Jesus, e as passagens da Bíblia.
Segundo Claude Larre, não há “incompatibilidade[xliv]”, para assumir sua própria terminologia, entre o Taoísmo e o Cristianosmo.
A tradução do texto do Tao é enriquecida pelos comentários destaca a vontade pulsante de Claude Larre de decifrar o significado da espiritualidade Taoísta. É o encontro de duas espiritualidades de mesma intensidade que realiza Claude Larre através de sua tradução do Tao. Elisabeth Rochat, que foi sua colaboradora por 20 anos, recorda que o trabalho de tradução do Padre Claude Larre oferece “uma oportunidade de trabalhar em profundidade através da abordagem de uma visão chinesa da vida”. Ela enfatia que o mais importante é que “as pessoas podem recordar o pensamento chinês, usá-lo para sua própria existência, em sua jornada espiritual, sem fazer amalgama com o Cristianismo”.
Para concluir, vamos nos referir a informações recentes, que datam de março de 2018. O Papa Francisco recebeu pessoalmente, no Vaticano, uma delegação Taoísta, que veio de Taiwan. Nessa ocasião o Papa disse: “estou feliz com esse trabalho em conjunto com o Conselho Pontificial para o diálogo inter-religioso. É um diálogo não só de ideias, é um diálogo humano, de pessoa a pessoa, o que ajuda a crescer como pessoa em nossa rota de busca pelo Absoluto[xlv]”.
Essas palavras do Papa certamente teriam o consentimento de Claude Larre.



[i] O Trabalho começou em 1949 e foi realizado principalmente pelo Padre Yves Raquin (1912-1998), sinólogo jesuíta francês que se estabeleceu em Taiwan a partir de 1953.
[ii] Dicionário Chinês-Francês com 5000 caracteres e 50 000expressões.
[iii] Dicionário Chinês-Francês com 13 000 caracteres e 300 000 expressões.
[iv] Atual Ho Chi Ming. (NT)
[v] Institut Ricci pour les études chinoises (NT)
[vi] Três raízes de um jardim (NT).
[vii] Claude LARRE, Trois Racines dans un jardin, Genève, La Joie de Lire, 2000, p. 59
[viii] Título original: Dao De Jing, le livre de la voie et de la vertu.
[ix] Entrevista com o Padre Benoît Vermander por correio eletrônico em 31 de agosto 2018.
[x] De acordo com a cultura chinesa, o casal céu-terra simboliza a Natureza.
[xi] Marcel GRANET, La religion des chinois, Paris, Albin Michel, 1998, p. 74
[xii] Texto original: désignant en français l’exégèse.
[xiii] Interpretação de uma obra literária, artística ou texto que visa esclarecer uma palavra ou escrito.
[xiv] Jacques DERRIDA, De la Grammatologie, Paris, Minuit, 1967, p. 208.
[xv] Em português a palavra “mesmo” é um adjetivi, porem pode possuir a função de adverbio, nesse caso a ela não varia em gênero ou número.
[xvi] LAO ZI, Dao De Jing, Le livre de la voie et de la vertu, traduction et présentation de Claude Larre, Paris, Desclée de Brouwer, 1977, p. 27.
[xvii] Ibid, p 30.
[xviii] Ibid, p 31.
[xix] Ibid, p 142.
[xx] Ibid., p. 46.
[xxi] Ibid., p. 120
[xxii] Ibid., p. 48.
[xxiii]Ibid., p. 80.
[xxiv] Ibid., p. 172.
[xxv] Ibid., p. 142.
[xxvi] Ibid p. 80, p. 116, p. 202.
[xxvii] Ibid, p. 70, p. 132, p. 172.
[xxviii] Ibid, p. 132, p. 150, p. 172, p. 222.
[xxix] Ibid, p. 228.
[xxx] 4 Ibid, p. 78, p. 154. Veja o livro intitulado Les Fioretti de Francisco de Assis. Este último permanece na cidade de Gubbio na Itália, onde realiza o milagre da conversão do lobo. A figura de Francisco de Assis atesta uma jornada existencial da riqueza para a pobreza, abandonando o eu para unir-se ao não-eu, tantos sinais óbvios do pensamento espiritual taoísta.

[xxxi] “O Caminho me faz pensar na Sabedoria como é vista na sabedoria de Salomão, distinta do mundo, para deus”, ibid, p. 108.
[xxxii] Ibid, p. 222.
[xxxiii] Ibid, p. 152.
[xxxiv] « Um homem, livremente conduzido pelo amor sobre-humano, reinteirou a Promessa da Eternidade contida no Sopro inicial. Entre o Taoismo e o ‘caminho cristão’, o poeta conseguiu com a provável ajuda de seu lado budista, assim como a bondade natural que se ler em seu rosto, percebida através dos ‘encontros’ que ‘mencionei no início’, uma “unidade orgânica vital. Isso não o levou a uma conversão no sentido estrito, mas ao que se designa como Sincretismo (termo que ele refusa com veemência), Mas como uma simbiose vivente.», Madeleine BERTAUD, « François Cheng, du Tao à la ‘Voie christique’ », Transversalités, n° 124, abril 2012, URL :https://www.cairn.info/revue-transversalites-2012-4-page-129.htm
[xxxv] LAO ZI, Dao De Jing, Le livre de la voie et de la vertu, traduction et présentation de Claude Larre, op. cit., p. 7.
[xxxvi] Ibid, p. 132. Texto atual em português: “Como é estreita a porta, e apertado o caminho que leva à vida! São poucos os que a encontram". Mateus 7:14 (NT)
[xxxvii]« O Tao é como o Reino, é tão grande como o grão de mostarda, a menor das sementes, mas quando ela cresce, se torna uma arvore e os pássaros do céu se abrigam em seus galho”, ibid., p.194..
[xxxviii] Ibid., p. 76
[xxxix] Ibid., p. 231.
[xl] Termo teológico cristão que trata do esvaziamento da vontade própria de uma pessoa e a aceitação do desejo divino de Deus.
[xli] Zìwǒ kōngxū 自我空虚.
[xlii] Wúwéi 無為 - ideograma tradicional (NT).
[xliii] 4 Ibid., p. 15 (Introdução da primeira edição).
[xliv] LAO ZI, Dao De Jing, Le livre de la voie et de la vertu, traduction et présentation de Claude Larre, op. cit., p. 112.
[xlv] « Le Pape reçoit une délégation de taoïstes », URL : https://www.vaticannews.va/fr/pape/news/2018-03/lepape-recoit-une-delegation-de-taoistes-.html


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quarta-feira, 17 de abril de 2019

A Forma Corporal – XING 形


Elisabeth Rochat de la Vallée *

Tradução  Fernando Assis de Carvalho
Caracteres Hélvio Lima



É o corpo sob o ângulo da forma corporal, de sua forma diferenciada.

“Por FORMA CORPORAL, é preciso compreender  que os seres que possuem forma e imagem são diferentes.” (釋名 shìmíng[i])

                形幼形象之異  xíng yòu xíng xiàng zhī yì.

O SuWen em sua definição de xíng , retoma igualmente o termo xiàng ,imagens:

                “A forma corporal é imagem” (SuWen Jiezi)
                形象也 xíng xiàng yě

e o comentarista Tuan Yucai[ii] precisa:

“Imagem (xiàng ) é colocada por representação (xiàng ). Isso quer dizer que é uma forma que se assemelha e que, consequentemente, podemos ver.”  

象當作像謂像似可見者也  xíng dāng zuò xiàng wéi xiàng sì kě jiàn zhě yě
Observemos de mais perto o significado de xiàng ou .

O primeiro sentido de xiàng é o de elefante (o caractere representaria a tromba, as defesas, as patas e a cauda do animal).
O segundo sentido, que se segue naturalmente, é o do marfim. Mas os outros sentidos em seguida nos colocam um problema. Chegamos a noções das formas, figuras, semelhanças, símbolos, representações, aparências, corpos celestes... Alguns dizem que estes sentidos derivariam daquele do elefante, pois este animal teria desaparecido bem cedo das regiões da China onde a escrita foi elaborada. Assim, xiàng , o elefante, restou apenas como uma palavra, uma imagem, uma representação figurada, gravada ou pintada de um animal desaparecido. De lá o sentido de imagens, representações...
Quando adicionamos o radical “homem” , obtemos xiáng , este caractere que vai no sentido das formas, imagens, retratos, ou mesmo estátuas, representações em geral; mas também semelhança, impressão deixada por qualquer coisa.
O que quer que seja, xiáng evoca uma imagem, uma forma deixada ou criada por uma realidade sem forma. Os fenômenos, xiáng , apresentam-se a nossa observação como a nossa ação. Eles têm origem na realidade indizível do Tao ou Caos.

“O grande símbolo está sem contorno” (Lao Tsé, cap. 41)    
大象無形 dà xiàng wú xíng.

O grande símbolo, o símbolo absoluto, está sem contorno, pois nenhuma forma se adapta a ele. O que é apenas “sem contorno”, “sem forma” 無形 (wú xíng), o é, não pelas representações fenomênicas particulares, mas o Grande Símbolo, dà xiàng 大象 é a ordem do absoluto, do Tao, além do mundo sensível.

Com a forma xíng nós somos introduzidos no mundo sensível, diversificado, onde as formas, provenientes do sem forma, são múltiplas e revestidas cada uma de características próprias.  
A decomposição do carácter xing faz aparecer duas partes:

- a fonética, etimologicamente a imagem de dois pratos de balança em equilíbrio : há algo de bem construído e solidamente equilibrado, para servir de base, de fundação.

- o radical : são os pelos, as plumas, os cabelos; algo de leve e flutuante que vem revestir e ornar a fundação, a designando ao olhar manifestando a vida pelo movimento de flutuar ao vento. É a bandeira, o estandarte, o signo de reconhecimento.
Utilizar uma forma normal dos seres sensíveis é pegar um lugar entre todos os seres diferentes que vivem entre o Céu e a Terra. Os dez mil seres são na medida do possível formas diferenciadas:

“Produzidos pelo Caminho, nutridos pela Virtude, figurados pela Espécie, finalizado pelo Entorno, os Dez mil seres”.
 (Lao Tsé, cap.51; trad. Claude Larre)

道生之 德畜之 物形之 勢成之 是以萬物
Dào shēng zhī Dé chù zhī wù xìng zhī shìyǐ wànwù

Quando Yu o Grande percorria o Império, chegando ao país dos homens nus, ele retirou suas roupas, deixando este país, ele retomou suas roupas. Da mesma forma, os seres se revestem e depois retiram um aspecto sensível; eles entram, pelo nascimento, no mundo das formas, das espécies; eles saem pela morte, para retornar ao “sem forma” (無形wù xìng ), ao invisível, ao informe, que é o reservatório inesgotável da vida e de potencialidades. Assim
           “O sem Forma, é o ancestral primeiro dos seres” (Huainanzi, cap. 1)
夫無形者 物之大祖也  fū wúxíng zhě wù zhī dà zǔ yě

ou um pouco mais longe:

                “Entramos, é a vida. Saímos, é a morte. Do sem Forma se passa ao que há uma e do que há uma forma, passa-se ao eu não tem.”

出生入死 自無蹠有 自有蹠無   chū shēng rù sǐ zì wù zhí yǒu zì yǒu zhì wù
A mesma ideia se encontra no Zhuangzi:

“O grande começo é o Sem Forma, é o Sem Nome. O Um que surgiu é o Um sem forma corporal; e do que os seres são produzidos é a Virtude. Do Sem Forma, se produz a distinção e de lá continuamente o que chamamos de destinos (particulares). Dois, entre o repouso e o movimento, nascem os seres vivos. A disposição natural do nascimento e do término dos seres é o que chamamos de forma corporal. A forma corporal e a constituição abrigam os espíritos, fazendo de cada ser um ser próprio, e isso chamamos de sua natura (própria).” (Zhuangzi, cap. 12)

泰初有無 有無名 一之所起 有一而未形. 物得以生 謂之德
Tài chū yǒuwù yǒuwúmíng yī zhī suǒ qǐ yǒu yī ér wèi xíng wù déyǐ shēng  wèi zhī Dé
物得以生 謂之德 未形者有分 且然無間 謂之命
Wù déyǐ shēng, wèi zhī dé wèi xíng zhě yǒu fèn qiě rán wújiàn, wèi zhī mìng
留動而生物,物成生理,謂之形 形體保神,各有儀則,謂之性
liú dòng ér shēngwù  wù chéng shēnglǐ  wèi zhī xíng xíng tǐ bǎo shén gè yǒu yí zé  wèi zhī xìng.

As formas diferenciadas surgem do que é sem forma e é aí  a origem de cada ser, de cada forma figurada na sua originalidade própria; é o que o permite de se individualizar ao mesmo tempo por uma aparência, uma forma corpórea e pela presença do shén , dos espíritos específicos e de se realizar em um destino.
A formação e a estruturação do ser humano procedem assim. Aqui uma passagem do começo de uma compilação médica:

“O Dao do corpo (humano, representação e estrutura), é do Não Ter ao Ter (formas). O Não Ter (o Sem Forma), são os sopros do Céu Anterior. O Ter (as formas), são as formas do Céu Posterior.” (Leijing Tuyi)

體象之道  自無而有者也  無者先天之氣  有者後天之形
Tǐ xiàng zhī dào   zì wù ér yǒu zhě yě   wù zhě xiāntiān zhī qì   yǒu zhě hòutiān zhī xìng.

O princípio que governa um corpo estruturado e apresentando uma aparência em função de linhas de força de sua estrutura interna é que “isso” começa dentro do Sem Forma para ir às formas. E o texto continua:

“Mestre Shao dizia: o Céu se apoia sobre as formas: a Terra serve aos sopros. Os sopros para criar as formas; as formas para abrigar os sopros.”

劭子曰 天依形地附氣氣以造形形以寓氣
Shào zǐyuē tiān yī xìng Dì fù qì qì yǐ záo xìng xìng yǐ yù qì

A forma corporal, xìng se apresenta imediatamente a nossa percepção: o que se vê, se escuta, se sente... (mas, igualmente, o que vê, toca, escuta, sente... exerce a atividade sensorial, sensível que o corresponde).
A forma corporal exprime sensivelmente a estrutura profunda, não visível; e é o local da circulação dos próprios do indivíduo, animadores e produtores ao mesmo tempo da estrutura (as linhas de força) e da forma.
Uma forma, xíng não é uma ilusão de ótica, uma aparência falaciosa, um engano, uma ilusão, uma imagem imaginária. A forma é aquilo que ela mostra, a expressão confiável de uma realidade subjacente. Uma pessoa se revelará pelo corpo, pelo seu corpo que depende, por exemplo, da forma e da grandeza de seus ossos, de sua hereditariedade, mas também de seu estado geral e, sem qualquer dúvida, de seu estado mental e espiritual.
O corpo, a forma corporal, xìng , é o lugar onde acontece a agressão do perverso (agentes de patologias) e aquele onde ocorrem as intervenções que reestabelecem a normalidade. Ele é o intermediário da cura. Forma corporal e perverso se encontram no mesmo nível de realidade, de sensibilidade, pois o corpo é ativo pelos sentidos e sofre a ação dos sentidos dos outros. A forma corporal é o terreno das ações sensíveis e reparáveis. A verdadeira ação, notadamente terapêutica, se situam no nível mais sutil dos sopros e das almas. Mas estes não são diretamente perceptíveis. Não vemos jamais o vento, somente os galhos e as folhas que balançam; assim, sabemos que há vento. Sabemos mesmo, observando bem, em qual sentido ele sopra, com qual força, como se proteger ou proteger a casa.
A dialética Sem forma/Forma ou mesmo sopros/forma sensível é a vida. O Shiming[1], na sua primeira seção consagrada ao Céu dá a seguinte definição para os sopros, qi :

“O que percebemos (que escutamos), mas que não há forma.” (Shiming)
有聲而無形yǒu shēng ér wù xìng

A forma, xìng , é o terreno onde se apresentam as diversas ações da vida, as quais podemos ver se manifestar. As formas variam com os momentos e os lugares.
Vemos por exemplo a geografia frequentemente explicar a compleição física, a forma corporal: os homens que nascem nas regiões do Sul são caracterizados de tal e tal maneira, pela diferença com os do Norte ou do Leste...
Os textos de Huainanzi e ainda, de Shanhaijing (clássico das Montanhas e dos Mares) nos informa sobre a forma na qual o Oriente, o lugar de nascimento, determina algumas características físicas, ou mesmo morais do indivíduo. Os textos médicos tais como Huangdi Neijing, insistirão, naturalmente, sobre as propensões das patologias em função do local de nascimento e de moradia.





[1] Dicionário chinês consagrado à fonologia que possuía fonologia do dialeto dos Han do leste.



[i] 釋名 Shìmíng – «explanação sobre os nomes», dicionário fonológico chinês do final da Dinastia Hàn (200 EC)
[ii] Dùan Yùcái 段玉裁 (1735-1815 EC) autor de  說文解字註 shuōwénjiězì zhù.


ZHUANGZI ch. 5 - Trad. Jean Lévi

  O Tao deu-lhe a sua aparência e o céu a sua forma, porque deixaria que as paixões prejudiquem o seu corpo? Você se deixa distrair pelo mu...