TEXTO : Os Cinco Aspectos SHEN (físicos e almas espirituais na Medicina Tradicional Chinesa)

Os Cinco Aspectos SHEN (físicos e almas espirituais na Medicina Tradicional Chinesa) 
Dr. Jean-Marc Eyssalet
 Tradução : Liliane Renault, MCristina Vidal e Tony Gelband

                                                                                                           
Os Shen ou Espíritos (que se traduz também por Consciência) representando as forças espirituais e psíquicas que nos animam e que se manifestam pelos estados de consciência, nossa capacidade a nos comover e a pensar, nosso temperamento, nossas aspirações, nossos desejos, nossos talentos e nossas habilidades.   Os Espíritos ocupam um lugar importante nas avaliações das causas dos desequilíbrios ou da doença e nas escolhas das ações destinadas a nos levar em direção a uma melhor saúde melhor.   Utiliza-se por vezes o singular, às vezes o plural quando se fala do Espírito ou dos Espíritos, o conceito chinês de Shen implicando ao mesmo tempo a unidade da consciência e a multiplicidade das forças que o alimentam.
O conceito de Shen provém das crenças animistas do xamanismo.  O taoísmo e o confucionismo refinaram esta visão da psique, tornando-a compatível ao sistema de correspondência dos Cinco Elementos.   Em seguida, o conceito de Shen sofreu novas transformações, confrontado aos ensinamentos do budismo cuja implantação foi fulgurante na China desde o fim da dinastia Han (em torno de 200 d.C).  Destas fontes múltiplas nasceu um modelo original e próprio ao pensamento chinês.
Diante os desenvolvimentos da psicologia e da neurofisiologia modernas, esse modelo, conservado pela Medicina Tradicional Chinesa (MTC) até os nossos dias, poderá parecer um pouco simplista.  Mas esta simplicidade se revela frequentemente um trunfo, porque ela permite ao terapeuta fazer vínculos clínicos entre o físico e o psíquico sem precisar dominar conhecimentos complexos.  Como o clínico trabalha, sobretudo, sobre o plano físico com o paciente, ele só intervêm indiretamente sobre o plano psíquico.  Todavia, a regulação empreendida terá repercussões positivas sobre os planos emocional e psíquico: assim, dispersando as mucosidades, tonificando o sangue ou reduzindo o excesso de calor, o terapeuta poderá acalmar, clarificar ou reforçar o Espírito, o que reduzirá a ansiedade, favorecerá o sono, clareará as escolhas, mobilizará a vontade, etc.

O equilíbrio psíquico 
Intimamente ligado à saúde psíquica, um bom equilíbrio físico permite portar um olhar justo sobre a realidade e agir em consequência.  Para atingir essa justeza, a MTC propõe uma higiene de vida onde importa cuidar de sua postura corporal, sua respiração, a circulação de sua energia original (Yuan Qi) entre outras ao nível da Medula e do Cérebro – e de praticar o qi gong e a meditação.  Assim como o Qi, o Shen deve circular livremente caso se deseje estar plenamente consciente da realidade tanto no corpo quanto no seu ambiente.
A visão tradicional descreve um colegiado entre os múltiplos componentes psíquicos que se chamam os Espíritos, que provém no início do macrocosmo Céu-Terra.  No momento da concepção uma parcela do Espírito universal (Yuan Shen) se encarna para experimentar o tempo de uma vida, as possibilidades do mundo formal e material, constituindo assim o Espírito individual.  Quando essa parcela do Yuan Shen se associa às Essências transmitidas por nossos pais, ela “se humaniza” e se particulariza para preencher suas funções humanas.  Os Espíritos humanos assim formados (também chamados Gui) são compostos de duas espécies de elementos: os primeiros caracterizados por suas funções corporais, os Po (Alma corporal), os segundos às funções psíquicas, os Hun (Alma psíquica).  
A partir daí, nosso Espírito individual se desenvolve pelo pensamento e pela ação colocando  a disposição os cinco sentidos e integrando progressivamente as experiências do vivenciado.

As entidades psicoviscerais (Ben Shen)
A atividade de todos esses componentes psíquicos (descritos abaixo) repousa sobre uma relação íntima, uma verdadeira simbiose, com as Vísceras (Órgãos, Medula, Cérebro, etc), a tal ponto que os chineses as designam sob o nome de “entidades psicoviscerais” (Ben Shen), ao mesmo tempo físicas e psíquicas que cuidam das Essências e que mantém um meio propício à expressão dos Espíritos.   
Assim a teoria dos Cinco Elementos associa cada órgão à uma função psíquica particular:
A direção dos Ben Shen retorna ao Espírito do Coração (Xin Shen) que designa o governo, a consciência global, tornada possível pela ação colegial, combinada e complementar das diferentes entidades psico-viscerais.
Ø  Os Rins (Shèn) sustentam a vontade (Zhi).
Ø  O Fígado (Gan) aloja os Hun (Alma psíquica).
Ø  O Baço/Pâncreas (Pi) apoia o Yi (o intelecto, o pensamento). O Pulmão (Fei) aloja os Po (Alma corporal).
O equilíbrio provém da relação harmoniosa entre os diferentes aspectos das entidades psicoviscerais. Importa notar que a MTC não considera que o pensamento e a inteligência estão na dependência exclusivamente do cérebro e do sistema nervoso como na concepção ocidental, mas que eles estão intimamente ligados ao conjunto dos Ó rgãos.

Os Hun e os Po (a Alma psíquica e a Alma corporal)
Os Hun e os Po formam o componente inicial e predeterminado de nosso Espírito, e nos proporcionam uma personalidade de base e uma individualidade corporal única. 

Os Hun (a Alma psíquica)
O termo Hun é traduzido por Alma psíquica porque as funções das entidades que a compõe (em número de três) assentando as bases da psique e da inteligência.  Os Hun são assemelhados ao movimento Madeira que representa a ideia de colocar em movimento, do crescimento e do desprendimento progressivo da matéria.  É a imagem dos vegetais, organismos vivos, levados por vontade própria, enraizadas na Terra, mas do qual toda parte aérea se eleva em direção à luz, ao calor e ao Céu. 
Os Hun, associados ao Céu e à sua influência estimulante, são a forma primitiva de nossos Espíritos que aspiram a se afirmar e a de desenvolver; é da água que provem a inteligência intuitiva e a curiosidade espontânea característica das crianças e daqueles que permanecem jovens.  Eles definem também nossa sensibilidade emotiva: em função do equilíbrio dos três Hun, seremos mais inclinados à privilegiar o mental e a compreensão, ou então os sentimentos e os ressentimentos.   Finalmente, os Hun definem nossa força de caráter, nossa força moral e a potência de afirmação de nossas aspirações que se manifestarão ao longo de nossa vida. 

Passar dos Hun (inatos) aos Shen (adquirido)
Assim que começa o desenvolvimento afetivo e cognitivo da criança graças à experimentação dos seus cinco sentidos, à interação com seu meio ambiente e à descoberta que ela faz progressivamente dela mesma, o Espírito do Coração (Xin Shen) empreende seu desenvolvimento.  Esse Espírito do Coração é uma consciência que:
Ø  se desenvolve pelo pensamento e pela memória das experiências;
Ø  se manifesta na vivacidade dos reflexos como nas ações refletidas;
Ø  registra e filtra as emoções;
Ø  é ativa de dia e em repouso durante o sono.
Os Hun colocam então as bases do Espírito do Coração.  Há entre Hun e Shen, entre a Alma e o Espírito, como um diálogo que se desenrolará entre o inato e o adquirido, o natural e o convencional, o espontâneo e o refletido ou o inconsciente e o consciente.  Os Hun são os aspectos inalterados do Espírito, eles se exprimem desde que faz calar o mental e a razão, eles vão além do que é modelado pela educação e os aprendizados sociais.  Todas as grandes qualidades do ser estão em germe nos Hun (a Alma psíquica), mas só o Shen (o Espírito) permite seu desenvolvimento tangível.
Os Hun são associados ao Fígado, fazendo eco ao estreito vínculo observado entre o estado desse Ó rgão (sensível às emoções, ao álcool, as drogas e aos estimulantes) e a capacidade para o indivíduo de manter a justa expressão dos Hun.  Progressivamente, do nascimento à idade da razão, os Hun, após terem dado sua orientação aos Espíritos, podem deixar a esses últimos todo o lugar que lhes constam. 

Os Po (a Alma corporal)
Os sete Po constituem nossa Alma corporal, pois sua função é vir à existência e à manutenção de nosso corpo físico.  Eles se referem ao simbolismo do Metal cujo dinamismo representa um abrandamento e uma condensação do que era mais sutil, conduzindo a uma materialização, a aparição de uma forma, de um corpo.  São os Po que nos dão a impressão de sermos distintos, separados dos outros componentes do universo.  Essa materialização garante uma existência física, mas introduz a inevitável dimensão do efêmero.
Ao passo que os Hun são associados ao Céu, os Po são ligados à Terra, ao que é turvo e grosseiro, as trocas com o meio ambiente e aos movimentos elementares do Qi que penetra no corpo sob a forma do ar e dos alimentos, que é decantado, utilizado, depois rejeitado sob a forma de resíduos.  Esses movimentos do Qi são ligados à atividade fisiológica das vísceras.  Eles permitem a renovação das Essências, que são necessárias à manutenção, ao crescimento, ou desenvolvimento e a reprodução do organismo.  Mas, quaisquer que sejam os esforços do Po, o uso das Essências levará inevitavelmente ao envelhecimento, à senilidade e à morte. 
Após ter definido o corpo da criança durante os três primeiros meses da vida intrauterina, como um molde virtual, os Po, enquanto Alma corporal, mantem-se associados ao Pulmão, último responsável da vida que começa por uma primeira respiração no nascimento e que termina no último sopro na morte.   Para além da morte, os Po permanecem atados ao nosso corpo e aos nossos ossos. 
Os signos de desequilíbrio dos Hun e dos Po
Se os Hun (a Alma psíquica) estão desequilibrados, se constata frequentemente que a pessoa se sente mal na sua pele, que ela não chega mais a superar os desafios, que ela hesita quanto ao seu futuro ou que a ela falta coragem e convicção.  Com o tempo, uma grande aflição psicológica pode se instalar, como se o indivíduo não fosse mais ele mesmo, não se reconhecesse mais, não pudesse mais defender o que é importante para ele, perdesse o desejo de viver.   Por outro lado, uma fraqueza dos Po (a Alma corporal) poderá dar sinais como afecções da pele, ou gerar conflitos emotivos que impedem a Energia de circular livremente no alto do corpo e nos membros superiores, e tudo é acompanhado, geralmente, por tremores. 

Yi (ideação e direção) e Zhi (vontade e ação)
Para se desenvolver, a consciência global, o Espírito do Coração, necessita dos cinco sentidos e mais particularmente de duas entidades psicoviscerais: o Yi e o Zhi.
O Yi, ou a capacidade de ideação, é a ferramenta que os Espíritos utilizam para aprender, manipular as ideias e os conceitos, brincar com a linguagem e visualizar os movimentos corporais e as ações à tomar.  Ele permite analisar os ensinamentos, de lhes encontrar um sentido e de preparar a memorização sob a forma de conceitos reutilizáveis.  A clareza mental, indispensável à eficácia do Yi, depende da qualidade das substâncias nutritivas produzidas pelo sistema digestivo e a esfera do Baço/Pâncreas.  Se, por exemplo, o Sangue ou os Líquidos orgânicos são de menores qualidades, o Yi será afetado, o que impedirá os Espíritos de se manifestar com eficácia.  É porque a capacidade de ideação (mesmo se ela se sobressai na partida da inteligência estabelecida pelos Hun) é associada ao Baço/Pâncreas e a integridade de suas funções. Quando o Baço/Pâncreas está fraco, o pensamento se torna confuso, as preocupações se instalam, o julgamento é perturbado e o comportamento se torna repetitivo, até obsessivo. 
O Zhi é o elemento que permite a ação voluntária; ele obtém a capacidade de permanecer concentrado sobre a realização de um projeto e de fazer prova de determinação e de resistência no esforço para realizar um desejo.   O Zhi está no coração da libido, está intimamente ligado aos desejos, e é um termo também utilizado para designar as emoções.
Para memorizar, os Espíritos utilizam o Zhi, entidade associada aos Rins, o órgão da conservação.   É, todavia, a Medula e o Cérebro que, graças as Essências, conservam a informação.   Se as Essências adquiridas estão enfraquecidas, ou a Medula e o Cérebro estão mal nutridos, a memória e a capacidade de concentração declinarão.  O Zhi é então bastante dependente da esfera dos Rins que, entre outros, gera as Essências inatas e adquiridas provendo por sua vez a hereditariedade recebida dos pais e as substâncias vindas do meio externo. 
A MTC observa vínculos preponderantes entre a qualidade das Essências, a vontade e a memória.  No olhar da medicina ocidental é interessante observar que as funções das
Essências dos Rins correspondem em boa parte àquelas dos hormônios como a adrenalina e a testosterona, que são poderosos estimulantes da ação.   No mais, as pesquisas sobre o papel dos hormônios tendem a demonstrar que um declínio dos hormônios sexuais participaria da senilidade, à baixa das capacidades intelectuais e à perda da memória. 

O eixo central (Shén – Yi – Zhi)
Se poderia dizer que o pensamento (Yi), sentimento (Xin Shen) e vontade (Zhi) formam um eixo central de nossa vida psíquica.  No interior deste eixo, a capacidade de julgamento do Coração (Xin Shen) dever criar uma harmonia e um equilíbrio entre nossos pensamentos (Yi) – dos mais triviais aos mais idealistas – e nossas ações (Zhi) – frutos de nossa vontade.  Cultivando essa harmonia, o indivíduo poderá evoluir com sabedoria e agir no melhor de seu conhecimento em cada situação.
Num contexto terapêutico, o interveniente deve ajudar o paciente a centrar esse eixo interior, seja ajudando os pensamentos (Yi) a fornecer uma perspectiva clara da ação a tomar, seja reforçando a vontade (Zhi) para que se manifestem ações necessárias às mudanças, e mantendo o Espírito, pois não há cura possível sem que os sentimentos encontrem seu lugar e sua quietude.
                                                                                                 
 



O Shen (Coração, Intestino Delgado, Mestre do Coração, Triplo Aquecedor) é a inteligência global que domina os outros = razão, consciência, elemento referencial do psiquismo, capacidade de julgamento.
       SENTIMENTOS: alegria, excitação, riso, prazer.
       VAZIO: angústia, abatimento e queixas todo o tempo, emotividade, nervosismo, timidez, fraqueza, desânimo.                   
       PLENITUDE: superexcitação, riso contínuo.

O Yi (Baço, Estômago) é o fichário da memória consciente, registra tudo desde a concepção, faculdade de compreender, inteligência dedutiva (matemática), imaginação repetitiva. 
       SENTIMENTOS: reflexões, preocupações, hábitos, obsessões.  
       VAZIO: aptidão de esquecimento desconcertante, falhas de memória, ausência de desejos, desgosto de tudo, mesmo de alimentos.
       PLENITUDE: repetições, obsessões retornando essencialmente ao passado, ideias fixas, angústia. 

O Po (Pulmão, Intestino Grosso) está em relação com o inconsciente, determina a ação/reação instintiva sem reflexão prévia, instinto de conservação (evita os acidentes), corresponde ao amor cativo ou repulsa. 
       SENTIMENTOS: desgosto, tristeza, pesares, medos.
       VAZIO: perda do instinto de conservação, desinteresse, vulnerabilidade, aflições.
       PLENITUDE:  obsessões voltadas essencialmente em direção ao futuro, crenças. irracionais, tristeza sem fundamento, gemidos.

O Zhi (Rins, Bexiga) é a vontade de agir, o motor de Shen, a decisão, a realização das intenções.
       SENTIMENTOS: medo visceral, vontade, decisão.  
       VAZIO: falta de vontade, indecisão, angústia, medo visceral, incapacidade de passar à realização.
       PLENITUDE:  temeridade, autoritarismo.

O Hun (Fígado, Vesícula Biliar) é a inteligência instintiva, a imaginação criadora, a vida sexual, os sonhos.
       SENTIMENTOS: cólera, irritabilidade,  descontentamento, emotividade, ciúme.
       VAZIO: falta de imaginação, descoordenação das ideias (ausência de espírito de síntese e de análise), falta de energia.
       PLENITUDE: cólera, agressividade, irritabilidade, sonambulismo, imaginação transbordante.


Bibliografia
Eyssalet Jean-Marc. Shen ou l'instant créateur, Guy Trédaniel, France, 1990.
Eyssalet Jean-Marc. Le secret de la maison des ancêtres, Guy Trédaniel, France, 1990.
Hammer Leon. Dragon Rises, Red Bird Flies, Station Hill Press, États-Unis, 1990.
Larre Claude, Rochat de la Vallée Élisabeth. Les mouvements du Coeur, Desclée de Brouwer, France, 1982.
Larre Claude. Les Chinois, Philippe Auzou, France, 1998.
Sionneau Philippe. Troubles psychiques en médecine chinoise, Guy Trédaniel, France, 1996.
Sionneau Philippe. Comprendre et traiter la dépression mentale en médecine chinoise, Guy Trédaniel, France, 1999.
Tremblay Nicole. L'utilisation du Shen dans la guérison par acupuncture, Revue Française de Médecine Traditionnelle Chinoise, 2000, nos 186-187, p. 65-78.


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