quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A Sinceridade Quintessencial do Terapeuta

 Elisabeth Rochat de la Vallée

Tradução: Zé Motta

 

Interação terapeuta / paciente: o vínculo terapêutico


Há sempre uma relação entre seres que se encontram. Ela é ainda mais forte quando esses seres focam-se uns nos outros, dirigem sua atenção de um para o outro, como é o caso do encontro entre terapeuta e paciente. O que ocorre no tratamento também é o que ocorre entre eles.

Uma maneira geral de abordar essa relação é considerá-la como um caso específico de troca de qi (), na qual os seres estão constantemente interagindo com coisas que alcançam e que os tocam.

A maioria dos seres interage seguindo os modelos inscritos em sua natureza, sem nunca realmente ser capaz de se desviar deles. Os seres humanos são diferentes, uma vez que são responsáveis pelo movimento de seu próprio qi e a maneira pela qual agem e reagem. Isso implica que o terapeuta, assim como o paciente, é responsável pelo que acontece na relação, uma vez que ambos são responsáveis ​​pela justeza do movimento do qi dentro de si mesmos, demostrando quão bem se conformam ao modelo natural.

Aquele que verdadeira e profundamente entendeu a natureza dos diferentes qi e dos cinco órgãos, pode interpretar corretamente os sinais apresentados pelo corpo, a atitude, as emoções, a mente e o estado espiritual do paciente. Para esta interpretação, o terapeuta usa os modelos disponíveis pelo conhecimento e raciocínio baseados em analogia, imagens (xiang ), experiência e dedução. Da mesma forma, ele cultiva dentro de si aquilo que dá qualidade mental, que abre a percepção e a inteligência, e dá vazão a ideias justas ou intenções: yi [1]. O terapeuta pode então realizar o tratamento.

Quando o terapeuta pressiona seus dedos sobre a artéria de um paciente ou olha nos seus olhos, um contato é estabelecido entre ambos, o qual  atinge as verdadeiras profundezas de seus seres. Nada deve distraí-los. Idealmente, nada deveria interferir no contato feito entre espíritos, além da consciência clara. Através da palpação e do olhar, o terapeuta já está dando sinais para o paciente por meio de seu sangue e qi (xueqi )[2], mas são sinais sobre os quais ele não tem controle e dos quais ele não tem consciência, porque se trata da qualidade de sua vitalidade, como está operando internamente, ao invés de uma ação realizada voluntariamente. Esta qualidade é construída dia após dia e não pode ser fingida; vem da sinceridade essencial (精誠) encontrada, por exemplo, em Zhuangzi ou em Huainanzi.

Por ‘Verdade (zhen )’, quero dizer pureza e sinceridade (jing cheng 精誠) [3]em seus mais elevados graus. Aquele a quem falta pureza e sinceridade não pode comover os outros. Portanto, aquele que se força a lamentar, embora possa parecer triste, não despertará pesar. Aquele que se força a estar com raiva, embora possa parecer feroz, não despertará temor. E aquele que se força ser afetuoso, embora possa sorrir, não criará nenhum ar de harmonia. Tristeza verdadeira (zhen ) não precisa fazer nenhum som para despertar pesar; raiva verdadeira não precisa se mostrar para despertar temor; afeto verdadeiro não precisa sorrir para criar harmonia. Quando um homem tem a Verdade dentro de si, seu espírito (shen ) pode mover-se entre as coisas externas. É por isso que a Verdade deve ser valorizada! (Zhuang zi 31, B Watson)

 

É mais pelo que realmente somos em nossa realidade profunda que o qi do paciente é movido, do que por quaisquer técnicas ou conhecimentos, mesmo que se façam necessários. Técnicas e conhecimento são como o aspecto terrestre do trabalho terapêutico; mas é colocado em uso apenas pelo aspecto celeste, o Céu em nós, o coração puro, que é o coração celeste.

Assim, quando o sábio acolhe seu Coração Celeste (tian xin ), sua voz pode se mover e transformar o mundo. Assim, quando sua Sinceridade Quintessencial (jing cheng 精誠) é estimulada (gan ) internamente, um qi corporificado responde (ying ) no Céu. (HNZ 20, Queen & Mayor)

 

A razão pela qual uma flecha pode ser disparada por uma longa distância e penetrar em uma dura substância é porque o arco é forte, mas a razão pela qual ela pode atingir o centro minúsculo de um alvo é devido ao coração humano (à retidão do coração, zheng xin ). Recompensar a bondade e punir a maldade é para decretos do governo, mas a razão pela qual podem ser realizados depende da Sinceridade Quintessencial (jing cheng 精誠). Portanto, embora um arco possa ser forte, não pode atingir o alvo sozinho. Embora seja um decreto iluminado, não pode ser realizado por conta própria. Eles devem estar ancorados na Sinceridade Quintessencial para serem eficazes. Portanto, se o governante institui o  Caminho ao povo e este não o segue, ele não tem exercitado um coração sincero (cheng xin ).  (HNZ 20, Queen & Mayor)

 

Assim, o Grande Homem conforma-se em Potência (de ) com o Céu e a Terra, conforma-se em brilho (ming ) com o sol e a lua, conforma-se em eficácia numinosa (ling ) com os fantasmas e espíritos, e conforma-se em confiabilidade (xin ) com as quatro estações. Assim, os sábios acolhem o qi do Céu e envolvem o coração do Céu (tian xin ), alcançam centralidade e incorporam harmonia. Eles não descendem do templo ancestral, no entanto, viajam para os Quatro Mares. [Em todos os lugares] eles alteram hábitos e mudam costumes, a fim de que as pessoas se transformem e se tornem boas como se fossem suas próprias naturezas. Isto é porque [os sábios] são capazes de transformar [outros], como um espírito (shen hua ). (HNZ 20, Queen & Mayor)

 

Todos os terapeutas sabem que, às vezes, quando o pulso está sendo tomado ou uma palpação, ou outro tipo semelhante de contato está sendo feito, uma imagem ou informação pode surgir internamente, e não vem do conhecimento ou raciocínio consciente, antes se impõe, e na maioria das vezes, se revela importante. No entanto, esse conhecimento nunca pode ser usado de maneira repetitiva. O terapeuta deve, da mesma forma, permanecer desconfiado da influência que seus próprios desejos e tendências podem ter sobre o que parece surgir espontaneamente dentro dele.

O paciente, ou alguma expressão de seu qi, pode induzir uma reação na mente/espírito do terapeuta, sem o seu conhecimento. O terapeuta deve permanecer alerta para os possíveis efeitos do qi do paciente sobre ele, bem como aos seus desejos e suas próprias tendências que podem influenciar seu discernimento.

            Seja qual for o caso, a interação entre terapeuta e paciente se apresenta de forma complexa, mesmo quando parece que apenas o terapeuta atua e o paciente está meramente passivo.

O terapeuta também deve detectar em si mesmo toda origem de emoções, desejos ou paixões, para que sua sanidade, raciocínio, percepções e interpretações permaneçam claras e adequadas. Eles devem construir e desenvolver sua sinceridade quintessencial.


Discurso e palavra na relação

Além das perguntas que faz, o terapeuta também pode conversar com o paciente. Ele fala para aconselhá-lo ou simplesmente pela troca em si. Uma coisa ou outra que ele diz pode tocar ou mover o espírito do paciente, iniciando no mesmo o processo de cura e transformação.

A palavra certa não é codificada. Não vem da aplicação de uma técnica. Não há o mesmo tipo de reflexão sobre a fala nesses textos que conhecemos hoje, no Ocidente. Não é conversa terapêutica, mas sim um ouvido gentil e um discurso apto vindo de um Coração bem cultivado e incessantemente purificado.

O discurso que «toca» o paciente é um discurso humano, que brota da relação, sob a condição de que aquele que o pronuncia tenha sido inspirado. O terapeuta deve, portanto, trabalhar em suas fontes de inspiração, cultivar sua interioridade e purificar seu Coração.

O terapeuta, por outro lado, tem o dever de informar seu paciente:

«Pertence às disposições intrínsecas (sentimentos, qing ) dos humanos odiar a morte e se deliciar com a vida. Informe-os sobre o que pode destruí-los (suas vidas); diga o que pode ser bom para eles. Aconselhe-os sobre o que é conveniente para sua condição. Exponha o que traz-lhes sofrimento amargo. Mesmo que sejam esse tipo de pessoa que não segue o Caminho (que não têm princípios, que não seguem os padrões da ordem natural da vida), como eles não o ouviriam? » (Lingshu ch.29)

⼈之情.莫不惡死⽽樂⽣.告之以其敗.語之以其善.導之以其所便.開之以其所苦.雖 有無道之⼈.惡有不聽者乎

 

            O que faz com que o paciente ouça e escute o terapeuta? A experiência tem mostrado que não é a verdade do que ele diz, nem o grau de inteligência do paciente, nem mesmo o medo da morte ou do sofrimento que provoca uma modificação duradoura do comportamento.

É algo que o comove. Aqui voltamos à «sinceridade quintessencial» (jing cheng 精誠) do terapeuta e da abertura que o tratamento e todos os sinais dados ao paciente conspiram para fazer aparecer. A única maneira é esvaziar o seu coração, para se tornar como espírito, ser um com o processo da vida.


O vazio do Coração[4] como postura terapêutica

A purificação é interna e vai além de uma simples atenção ao bom comportamento. É uma redução dos desejos e abrandamento da vontade, de forma a chegar à serenidade, que por si só pode permitir o uso total da inteligência espiritual (shen ming 神明).

Diz-se que para cultivar a correta apreensão dos sinais dados pelo paciente, da maneira como o ser do paciente se apresenta, o terapeuta deve refinar suas percepções. Refinar suas percepções para que sejam astutas e sutis, não acontece através do acúmulo de conhecimento, mesmo que seja necessário para a parte técnica da ação. Acontece por meio da percepção das potencialidades interiores do Coração, que fundamentalmente residem em sua capacidade de abrir-se para o processo da vida além dos pensamentos, declarações, formulações ou imagens. É o vazio do Coração que permite o surgimento de reações adequadas às situações, levando em consideração tudo que o estado mental pode perceber - a inteligência pode compreender além de tudo o que está constantemente escapando dessa apreensão. Isso é «sinceridade quintessencial jing cheng 精誠 ».

Trata-se, portanto, de um modo de vida, uma prática constante. Não pode ser simplesmente uma atitude manifesta durante o tratamento ou enquanto o terapeuta interage com o paciente. É a realidade interna do terapeuta.


«Sangue e qi (xue qi
) são o esplendor do homem e os cinco órgãos (wu zang ) são suas essências (jing ). Quando o sangue e o qi estão concentrados nos cinco órgãos e não dispersos do lado de fora, então o peito e o abdômen ficam preenchidos, ânsia e desejo diminuem. Quando o peito e o abdômen estão preenchidos, e ânsia e desejos diminuem, então ouvidos e olhos estão claros, audição e visão aguçadas. Quando ouvidos e olhos estão claros, audição e visão aguçadas, isso é chamado de iluminação (ming )[5]. » (Huainan zi ch.7 - tradução Monkey Press, Jingshen)

是故⾎氣者,⼈之華也;⽽五藏者,⼈之精也。夫⾎氣能專於五藏⽽不外越則胸腹充⽽ 嗜欲省矣。胸腹充⽽嗜欲省,則耳⽬清、聽視達矣。耳⽬清、聽視達謂之明


            A referência a isso é facilmente encontrada na passagem sobre o «jejum do coração» no Zhuangzi ch.4:

«Unifique tudo o que está em sua mente; não ouça com o ouvido, ouça com o coração-mente (xin ); [ainda melhor] não ouça com o coração-mente, ouça com o qi [o qi original, o qi celeste presente na raiz de cada ser]. O que ouvimos é limitado ao ouvido. O [trabalho do] coração-mente é limitado ao reconhecimento. Mas o qi é o próprio vazio, esperando por todas as coisas. A maneira de proceder (dao ) [6] ancora-se apenas neste vazio (xu ). O vazio é o jejum do coração (xin zhai ). » (Zhuangzi ch.4)

⼀志,無聽之以耳⽽聽之以⼼,無聽之以⼼⽽聽之以氣。聽⽌於耳⼼⽌於符。氣也者 ⽽待物者也。唯道集虛。虛者,⼼齋

 

Uma vez que o vazio é criado, tudo pode estar presente e coexistir, sem nada se apresentando a pensar de forma distinta e separada. Correlações são feitas, não porque são conhecidas e aplicadas, mas porque correspondem ao real, ou pelo menos uma leitura do real que evita a deturpação da abordagem. É espontâneo, instantâneo ou além o tempo, surgindo como um esboço da ideia ou da direção a seguir. As palavras vêm a seguir, a memória do conhecimento e da experiência articulando e definindo a ação, o gesto terapêutico completo.

 

A intenção / intuição do Coração

Uma passagem do capítulo sobre o Trabalho Interior (nei ye ), do Guanzi, mostra que a intenção (yi ) vem do Coração,  como o esboço de um pensamento que ainda não foi falado, de um ideia não especificada. No entanto, tudo o que acontece no espírito e na mente, tudo que decide sobre o caminho para a ação e determina sua qualidade, vem daí.

«Por meio da mente (coração, xin ) você armazena a mente: Dentro da mente ainda há outra mente. Essa mente dentro da mente: é uma consciência (yi = intenção) que precede as palavras. Só depois de haver consciência (intenção) é que toma forma; Só depois de tomar forma, há palavra. Só depois de haver palavra, é implementada; Só depois de implementada, há ordem[7]. Sem ordem, você sempre será caótico. Se caótico, você morre. » (Roth) (Guanzi ch.49, Neiye)

⼼以藏⼼,⼼之中⼜有⼼焉。彼⼼之⼼,⾳以先⾔,⾳然後形,形然後⾔。⾔然後使,使 然後治。

 

Pode-se dizer que a verdadeira fala do terapeuta, aquela que toca o paciente e «move», vem da intenção que emana de um Coração vazio de todo pensamento e desejo. A intenção pura, vinda de um Coração vazio, é intuição, intuição em sua melhor acepção.

O terapeuta muitas vezes nem tem consciência do alcance do que diz, porque fala sem qualquer vontade ou propósito pessoal, sem um fim em mente. Alguma ideia ou palavra aparece em seu coração-mente, do processo de encontro que ocorre no vazio de seu Coração; eles apenas vêm da realidade da relação e da situação presente.

De uma forma ou de outra, tudo o que acontece na relação terapêutica, fundamentalmente, depende da qualidade da disposição interna do terapeuta (yi ).

 

Nutrindo a intenção / intuição

O vazio do Coração é uma condição. Outra faceta é a plenitude: aquela da qual o terapeuta nutre seu estado mental e seu espírito, seu conhecimento e memória, o que forja sua consciência e seu ser, isto é, seu Coração e seu funcionamento.

O Grande Aprendizado (da xue )[8] enfatiza a importância da intenção, yi entre o conhecimento dos seres e das coisas e a autocorreção.

«Querendo cultivar-se, primeiro corrigiram (zheng ) suas mentes (xin ). Querendo corrigir suas mentes, primeiro tornaram suas vontades (intenção, yi ) sinceras (cheng ). Querendo ser sinceros, primeiro ampliaram seus conhecimentos. Ampliação de conhecimento consiste na investigação das coisas. Quando as coisas são investigadas, o conhecimento é ampliado. Quando o conhecimento é ampliado, a vontade (intenção, yi ) torna-se sincera (cheng ). Quando a vontade é sincera, a mente (xin ) está correta (zheng ). Quando a mente está correta, o eu é cultivado. » (Trad. A. Charles Muller)

⾝者 誠.

 

Sun Simiao, no prefácio de sua obra principal, o Qianjinfang , insiste na necessidade do terapeuta nutrir, correta e totalmente, seu conhecimento antes de falar de seu estado mental. É recomendado para quem deseja se tornar um grande terapeuta estudar o clássicos da medicina, incluindo todos os ramos, como acupuntura, moxabustão e ervas, mas também familiarizar-se com as técnicas de dedução e os modelos que ela usa, e então cultivar-se lendo textos de história, aqueles que expõem o pensamento confucionista, as abordagens taoístas (incluindo as práticas do yangsheng ) e, claro, os sutras budistas.

O objetivo não é dispersar-se muito ou tornar-se um erudito, mas treinar discernimento, para forjar as ferramentas de investigação. Todo esse conhecimento, se tiver sido compreendido e corretamente assimilado, participa da elaboração de uma intenção autêntica, a raiz da verdadeira relação com o paciente, e de um diagnóstico esclarecido e tratamento adequado.

A título de conclusão, citemos o prefácio de Sun Simiao, no qual expõe a sua ideia do terapeuta perfeito:

«Sempre que um grande médico trata as doenças, tem que estar mentalmente calmo  (安神) e com firme disposição (定志). Ele não deve ceder aos desejos e vontades, mas tem que desenvolver primeiro, uma atitude marcante de compaixão. Ele deve se comprometer firmemente à boa vontade de esforçar-se para salvar todas as criaturas vivas. » (Trad. P. Unschuld)



[1] Em inglês, a rica e complexa noção de presta-se ao uso de várias traduções: significado, intenção, disposição interior, ideia.

[2] O sangue e o qi (xueqi) carregam aquilo que permite a vida fisiológica, mas também aquilo que expressa a vida psicológica. O xueqi faz com que o que está no Coração apresente-se em todos os lugares do organismo, incluindo a capacidade de conhecer e de perceber, tudo que faz mente / espírito e consciência, qualquer mudança na mente ou na emoção. Todo o mau funcionamento está inscrito no fluxo vital e em seu ritmo e, portanto, é perceptível nos pulsos.

 

[3] Para ser perfeitamente puro e ser perfeitamente fiel a sua verdadeira natureza.

[4] A palavra Coração é usada na maior parte do tempo como uma simplificação para significar uma realidade que abrange as esferas da emoção, afeto, psicologia, intelecto, pensamento, conhecimento, consciência, bem como percepção interna ou espiritual.

 

[5] : a luz interior iluminando a inteligência e permitindo a ela agir de acordo com o próprio movimento da vida.

[6] Aqui, dao tem o significado de curso de ação, o que dá a regra de conduta. O que inspira o comportamento, o discernimento, a ação.

[7] Mesmo que este não seja o primeiro significado deste texto, o caractere pode ser lido, e também é usado para «tratar».

[8] O Grande Aprendizado é um dos Quatro Livros do Confucionismo.

 


ZHUANGZI ch. 5 - Trad. Jean Lévi

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