Elisabeth Rochat de la Vallée
Tradução : Zé
Motta
Na medicina chinesa, a vontade
(zhi 志) é primeiro percebida como uma das cinco forças espirituais (wu shen 五 神)[1].
Ligada aos rins, a vontade é o envolvimento do qi da água na construção e
funcionamento da consciência e da mente.
Mas os textos médicos chineses também
falam das cinco vontades (wu zhi 五 志) e as apresentam, por exemplo no Suwen
cap.5, como raiva, euforia, pensamento obsessivo, tristeza e medo. São essas
cinco vontades diferentes do que se costuma denominar “emoções”? Qual é a
relação com a vontade dos rins?
A partir da leitura cuidadosa dos
textos clássicos chineses, tanto filosóficos quanto médicos, é possível
explicar o significado e o uso da vontade (zhi 志).
1.
Expressão
dos rins na mente
Nesses textos clássicos, vontade é a
determinação da mente, ela dobra a mentalidade em uma certa direção e controla
sua atividade. A vontade visa um objetivo, seja ambição pessoal ou nobre ideal.
Por meio da vontade, está-se disposto a fazer ou não fazer algo, inclinado a
gostar ou não gostar de algo. A vontade é uma aspiração profunda e forte de
todo o ser.
Se aquilo a que se aspira está
alinhado com o que é benéfico para a vida, a vontade serve ao desenvolvimento e
realização do ser. Se aquilo a que se aspira se opõe à ordem natural, a vontade
volta seu poder contra a vida, exaurindo vitalidade com as paixões e aviltando-a
com desejos inadequados.
Se aquilo que aspiramos está de
acordo com nossa natureza original, a vontade é um lembrete constante do que é
certo e nos leva ao cumprimento de nosso destino. Assim, mantemos o caminho de harmonia.
Mas se a vontade consiste em inclinações geradas pelas paixões vindas de desejos
dos sentidos e de propósitos egoístas, nos leva a desviar, a sair de nosso caminho,
através de desejos que se multiplicam e aumentam sempre, já que não podem
nutrir a vida.
Para a vontade, a relação com a
origem é fundamental. Como o impulso que envia a seiva da raiz até o topo da
árvore e às pontas das folhas mais distantes, a fim de permitir o seu crescimento,
a vontade enraizada na natureza original conduz tudo dentro de nós a sua expansão
florescente.
A relação com o cumprimento do
destino também é crucial. Viver de acordo com o caminho que o Céu ou a Natureza
nos fez, é o que se chama de destino. A vontade perfeita nos move em direção ao
cumprimento da dotação celeste ou natural na vida diária, bem como no curso de
uma vida inteira.
Isso explica a associação feita, na
medicina, entre a vontade e os rins, representante do elemento água. A água
está ligada à origem e ao início da vida, assim como os rins dentro de um ser,
a relação constante com a origem, a raiz do Pré-Celestial. Eles também são a
base sólida para a interação do yin e do yang em todos os órgãos; contanto que
o yin e o yang dos rins são fortes e equilibrados, os órgãos podem funcionar
plenamente e bem. Eles garantem o fluxo contínuo da vida e mantêm a identidade
dentro de cada ser humano - que é permanecer fiel a sua dotação original e
viver sua potencialidade original na vida pessoal. Isso é cumprir o próprio
destino, construir e renovar o Pós-Celestial pelo modelo do Pré-Celestial.
O espírito ligado a um órgão pode
ser usado para representar o funcionamento deste órgão, sem implicar um nível
mental ou espiritual da atividade. Por exemplo, no Suwen cap.62, os espíritos
(shen) representam o funcionamento do coração e a vontade (zhi), dos rins. É
então possível falar em excesso e deficiência dos “espíritos” e da “vontade”.
Mas espíritos e vontade não são considerados neste contexto como a mente ou parte
da mente; são considerados o funcionamento normal do coração ou dos rins. Nesse
caso, os sintomas mencionados correspondem a uma disfunção dos órgãos e não a
uma disfunção da mente.
2.
Orientação
do coração-mente
O ideal que alguém escolhe ter em
seu coração-mente determina sua vida mental e física.
Um ideal começa com uma ideia, um
sentimento, uma emoção, um pensamento ... que é o que se tolera, aceita ou
mantém em mente. Como é dito no Lingshu cap.8: “Quando a intenção (yi 意) se torna
permanente, falamos de vontade (zhi 志).”
O que está na mente não pode ser
dissociado do que está no corpo; o que está no coração está também na carne. A
vontade não é uma ideia, um propósito presente apenas no pensamento, também
impacta o sangue e o qi (xue qi 血氣) e suas funções no corpo. O sangue flui
do coração e permeia até as menores e mais remotas partes do corpo, da parte
mais interna dos órgãos até a ponta do cabelo. O coração pulsa o sangue
regularmente e está presente onde quer que o sangue esteja. Então, emoções e
paixões, propensões e reflexões, bem como capacidade de perceber e saber estão
presentes no sangue e, portanto, informam os membros e os órgãos, as atividades
e reações conscientes e inconscientes do corpo.
O coração mostra seu duplo
aspecto: é um dos cinco zang, representante do elemento fogo e encarregado de
controlar a circulação sanguínea (xue mai 血脈); e é o grande mestre dos cinco zang,
sua fusão em uma unidade - a mente, que é consciência e discernimento, inteligência
e vida afetiva.
Em um nível fundamental, a mente
é o resultado da fusão das expressões espirituais dos cinco zang, cada um com
seu próprio movimento e especificidade. A vontade é a contribuição dos rins na
formação da mente.
Os espíritos (shen 神) do coração são
a luz, o brilho espiritual (shen ming 神明) permitindo uma consciência clara e
precisa. Cabe ao coração reconhecer o que se encaixa com o movimento natural da
vida, para mantê-lo, cultivá-lo e transformar a intenção (yi) em uma vontade adequada. De certa
forma, a vontade é a força inabalável que permite manter a orientação iniciada
pela intenção.
Se um coração está cheio de
desejos e paixões, estes moldam a mente, alteram a consciência que está no
coração, no sangue, nos órgãos e no corpo. A direção geral da vida, as grandes
decisões, bem como as respostas diárias a uma situação são determinadas pela
vontade firmemente estabelecida no coração-mente. A vontade guia o qi, que são
os movimentos e a força por trás dessas atitudes.
“Pelos sabores guia-se (xing 行) o qi, pelo qi solidifica-se a intenção (zhi 志), pela intenção fixa-se o discurso." (Chunqiu
zhuozhuan, Duque Zhao, 9º ano, tradução A. Graham, Yin-Yang e the Nature of
Correlative Thinking, p.72)
“A vontade (zhi 志) é comandante do
qi (qi zhi shi 氣 之 師), enquanto o qi é o que preenche o
corpo (ti zhi chong 體 之 充). Onde a vontade chega, o qi para. Por
isso é dito, controle a sua vontade e não abuse do seu qi '. ” (Mencius
II A, tradução D.C.Lau, Chinese University Press)
Lingshu, cap.27 afirma que quando
a percepção de uma dor devido ao frio é sentida na mente, a consciência se
concentra em onde está a dor, o que às vezes é suficiente para direcionar o qi
para aquele local e dissipar a dor através de um efeito de aquecimento. A mesma
ideia é encontrada em exercícios físicos (Taiji, Qigong): o qi é guiado não
apenas pelos movimentos do corpo, mas também pela imagem e pensamento formados
na mente. Ainda mais nas práticas daoístas, nas quais o qi é guiado internamente
apenas pela mente.
A “arte do coração” é esvaziá-lo de
desejos e paixões, de tendências que não são reconhecidas como inerentes à
natureza original, a fim de deixar o brilho espiritual desenvolver e tornar a
mente equilibrada e harmoniosa. A comunicação entre o que domina a vida - o
coração - e a interface com a origem - os rins - é essencial. No chinês moderno,
a expressão formada pelos espíritos do coração e a vontade dos rins, shen zhi (神 志) significa a mente, a
consciência, a capacidade de conhecer e refletir sobre o que é conhecido.
3.
As cinco
vontades
A vontade dos rins, vista como um dos
cinco espíritos (wu shen 五 神),
é a orientação na mente direcionando todo o qi. Na melhor das hipóteses, é a
propensão natural, reconhecida, aceita e cultivada de cada ser humano.
De acordo com a teoria dos cinco
elementos, a vida é analisada por meio de cinco movimentos do qi, cinco modos
de agir e reagir. Cada um desses cinco qi, que são os representantes dos cinco elementos,
tem sua própria propensão natural.
Por exemplo, o qi da madeira, que
é o qi do fígado em um ser humano, salta naturalmente e vigorosamente para cima
e para fora, dando impulso à circulação e permitindo que prossiga sem
obstáculos até o fim de seus caminhos; eles projetam física e mentalmente. Eles
dão o impulso de seguir em frente, de fazer planos e de ter coragem. Quando
esses qi não estão contrabalanceados pelos outros, temos a raiva. Assim, é
possível dizer que a raiva é a vontade do fígado. É a expressão da natureza do
qi da madeira ou do fígado.
O mesmo pode ser dito dos outros
órgãos. Normalmente, a euforia está associada ao coração, pensamento obsessivo
com o baço, pesar (ou tristeza) com o pulmão e medo com os rins. Elas são as
cinco vontades (wu zhi 五 志). Quando elas se fundem
harmoniosamente, a mente está bem equilibrada. Quando alguma está em excesso, a
emoção perturba os movimentos bem ordenados do qi.
Onde reside a diferença entre as
sete emoções e as cinco vontades, considerando que as cinco vontades são cinco
das sete emoções?
Muito provavelmente, a expressão
“cinco vontades” indica, com o número cinco, a organização básica de todas as
trocas e interações do qi. A mente não pode existir e funcionar sem eles. Desrespeitar
seus padrões naturais transforma as cinco vontades nas cinco emoções, porque a
falta de brilho espiritual torna a mente inconsciente da vontade correta,
levando à desordem e danos.
A expressão “sete emoções” (qi
qing 七情) insiste, com o número sete, no perigo de desordem potencial induzida por
paixões.
4.
Vontades
sazonais
O Homem autêntico não vacila em sua
determinação; ele permanece firmemente em seu ideal de virtude e usa todos os
meios para alcançá-la. No entanto, ele muda e se adapta de acordo com a
situação, não apenas em seu corpo, mas também em sua mente. Ele dobra sua
vontade sem ser infiel a sua natureza.
Essa variabilidade é frequentemente
encontrada como uma das principais características do Sábio. Por exemplo, em
Zhuangzi, cap.6:
“[O Verdadeiro Homem (zhen ren 真 人)] ... sua mente
(xin 心) esquece; seu rosto é calmo; sua testa é ampla. Ele é fresco como o
outono, ameno como a primavera, e sua alegria e raiva (xi nu 喜怒) prevalecem ao
longo das quatro estações. Ele concorda com o que é certo para as coisas e
ninguém conhece o seu limite. ” (tradução de B.Watson, The Complete
Works of Chuang Tzu, p.78)
Permanecer firme e inabalável não
significa não mudar; pelo contrário, permite completa e real valorização das
circunstâncias para se adaptar exatamente a elas. É o fundamento do oportunismo,
arte de agir e sentir de acordo com a qualidade do momento, do qi, da estação
etc.
Suwen cap.2 apresenta as quatro
estações, mostrando para cada uma delas a apropriada disposição interna, a
tendência exata da sensibilidade, a vontade adequada.
Assim, durante a primavera, “exerce-se
a vontade (shi zhi 使 志) para a vida: deixar viver, não matar; dar, não
tirar; recompensar, não punir. ”
No verão, “exerce-se a vontade,
mas sem violência, auxiliando o brilho da beleza e da força que assim cumprem
sua promessa. Deve-se auxiliar o fluxo de qi que almeja ir para o exterior."
Durante o outono, “exerce-se a
vontade com paz e calma, para amenizar os efeitos repressivos do outono. ”
No inverno “exerce-se a vontade
como se enterrado, como se oculto, e cuidando apenas de si mesmo, como se fixado
em si mesmo, em posse de si mesmo. ”
Ser muito severo durante a primavera
- ou em qualquer momento análogo ao qi da primavera - vai contra a ordem
natural da vida, tanto dentro como fora de nós. Mas não ser rígido no outono
também vai contra o movimento natural da vida. Uma vida individual sempre
evolui em meio a circunstâncias mutáveis, em meio a variações de qi.
Deve ser como a água do rio.
Desde sua nascente, o rio nunca muda seu destino… ou a sua mente: dirige-se ao
mar. No entanto, nenhum rio segue direto; atinge seu objetivo depois de muitas
voltas e curvas. A água nunca se afasta de sua natureza que é descer, fluir
para baixo. Por isso, o rio sempre chega ao mar por meio de morros e planícies,
mudando seu curso de acordo com as demandas do terreno circundante. As voltas e
curvas não se opõem ao seu objetivo, elas ajudam a alcançá-lo.
Para cumprir o seu destino, é preciso
manter o propósito oriundo de sua natureza original, e nunca abandonar as determinações
dela. Mas cada situação, cada momento da vida, cada parte do corpo requer uma
orientação específica, um desejo que deve participar para a realização do todo.
Para começar um negócio é preciso
ter uma ideia e um ideal, querer fazer algo de uma determinada maneira. No
processo de desenvolvimento, diferentes e complementares departamentos e
divisões são constituídos, cada um com a sua finalidade. Cada um deles está correto
se funciona de acordo com seu próprio propósito e, nesse sentido, participa do progresso
harmonioso do todo. Em cada nível, a estratégia e as táticas podem mudar,
dependendo das circunstâncias e oportunidades mutáveis, mas sem se opor ao
objetivo original e à aspiração do negócio, sem alterar o espírito do
empreendimento.
Assim, o Lingshu cap.8 afirma com
precisão: “Quando a vontade perseverante muda, falamos de pensamento (si 思).”
No ser humano, a vontade é una, o
impulso único que vem da origem - os rins, passando pelo coração-mente para se
tornar uma firme vontade, capaz de dar a orientação certa para todo o ser, em
seus anseios, desejos e atividades. Essa vontade guia o qi e é a base para o
pensamento. Tem muitas expressões, como a propensão natural dos cinco zang ou
todas as variações de acordo com as estações, circunstâncias, idades…. Mas
todas essas expressões da vontade podem participar no melhor cumprimento do
destino deste ser, somente se o seu coração estiver orientado em direção ao Céu
para então receber a luz espiritual.
[1] Os cinco espíritos são: os espíritos (shen) ligados ao coração, os Hun ligados ao fígado, os Po ligados ao pulmão, a intenção (yi)
ligada ao baço e a vontade (zhi) ligada aos rins.
Jardim "yin yang" no Hospital de Lavaur , na França.
https://www.youtube.com/watch?v=DQHJOiiz0eo&feature=youtu.be