Elisabeth Rochat de la
Vallée
Tradução: Mariana C. T. Scarpa
Revisão: Thiago Fortes Ribas
O
VENTO
Na
China arcaica, por volta do século XV A.C., o caractere que designa o vento se
confunde com aquele que designa a fênix[ii].
As fênix, ou mais exatamente, os quatro-espírito-fênix, são mensageiros do
Mais-Alto, divindade suprema e Primeiro ancião real, que reina no Céu. O
imperador do Alto (shang di 上帝)
envia seus ventos-espíritos pelas quatro direções, cada um está encarregado de
trazer as influências adequadas aos quatro grandes territórios que se estendem
ao Norte, Sul, Leste e à Oeste da região central onde reina o soberano
terrestre.
O
vento traz do Céu para a Terra; é um dom e uma ordem; um dom, pois graça a ele
a vida prospera e uma ordem, pois a maneira pela qual a vida se desenrola vai
depender do vento que toca a região em que ela se desenvolve, isso implica que
o homem se submete à qualidade das influências vindas do alto, nas suas ações e
sua conduta.
O
vento surge como um e múltiplo. Ele é um no sentido de que há uma única e mesma
fonte, o Céu e seu soberano. Ele é múltiplo no sentido de que sua manifestação
é sempre particular; o soberano do Alto envia seus emissários que se manifestam
cada qual como os ventos que sopram sobre um território dado.
O
vento, quando ele sopra, é sempre os ventos que chegam de todas as direções,
cada um com suas qualidades próprias. Uma noção forte e antiga, datando talvez
do [período] neolítico, é aquela dos Oito ventos (ba feng 八風);
são todas as variações possíveis disto que sopra do Céu sobre a Terra em função
das direções de origem, disto que caracteriza esta direção (montanha ou mar
etc.) e também da época do ano em que o vento sopra.
A
relação essencial e constante do um e do múltiplo se encontra na noção de
sopros (qi 氣)
e naquela de espírito (shen 神).
Quando
um vento toca um território e as pessoas que ali vivem, ele pode trazer
infortúnios e bençãos. Pode transmitir epidemias e doenças, antigamente
compreendidas como punições por má conduta enviadas a seus descendentes pelos
antepassados que residem junto ao soberano do Alto; os rituais de sacrifício
acalmarão sua ira e reestabelecerão boas relações entre os vivos e os mortos[iii].
O vento pode não ser aquele que deveria chegar neste momento do ano, por
exemplo, ele não traz as chuvas necessárias para o cultivo; tampouco ele pode
ser muito violento, muito frio etc. Ele deixa louco ou paralisa, ele arranca as
flores destruindo a promessa dos frutos...
Quando
o bom vento traz as influências adequadas, então ele representa o Céu
fecundando a Terra. Por suas inumeráveis aberturas, tais como as grutas na
encosta da montanha, o vento penetra no seio da Terra; chamamos de “cavernas do
vento” (feng xue 風穴),
pois a potência do Céu se entranha na Terra, particularmente na primavera ou
quando estronda o trovão e lampeja o relâmpago que rasga a abóboda celeste e perfura
o solo, acordando aqueles que hibernavam e estimulando a atividade em todos.
Assim,
o vento desencadeia a germinação e a floração; ele inicia a série de
transformações que resultam, alguns meses mais tarde, na completa maturidade das
espigas prontas para a colheita que nutrem os homens. O vento é o sopro cósmico
que age entre o Céu e a Terra, que muda e transforma. Esta faculdade de
produção e de transformação se encontrará associada a potência suprema, fonte
de vida, assim como [se encontrará associada] aos espíritos (shen 神)
que emanam nele. Na China arcaica, as transformações inerentes à vida e que são
a evolução de todo ser são fortemente ligadas ao vento que constantemente gira
e muda de direção e de qualidade.
O
vento é empregado na língua clássica para designar os usos e costumes, climas e
atmosferas, os modos e vogas, os ares e as aparências, as reputações e os
rumores, os cantos populares e as agitações sexuais; os tons mutáveis da vida e
as atitudes sociais.
Sua
relação com a mudança é tão forte[iv]
que ela se impõe quando os letrados explicam seu caractere, 風,
composto de um inseto (虫)
preso num redemoinho. Eles veem nele o vento da primavera, que desencadeia a
atividade vital adormecida, que acorda os animais hibernantes, que faz surgir
os insetos e suscita suas metamorfoses. Diz-se que, quando o vento se coloca em
movimento, os insetos aparecem e se metamorfoseiam no espaço de oito dias[v].
Ao
longo do tempo, o vento vai simultaneamente se enriquecer de novas associações
e perder toda a sua potência cósmica.
Se
consideramos a China antiga e a abundante literatura que ela nos deixou entre o
século 5 A.C. e o século 2 D.C., nós iremos encontrar outras imagens do vento.
Considerando
sua rapidez, sua violência, seu aspecto impalpável e sem forma, nós o colocamos
facilmente do lado yang. Ele forma com a chuva um par cuja significação
está além das intempéries e dos elementos desencadeados pelos excessos delas.
Pela chuva yin, o Céu desce e dá a fertilidade à terra; pelo vento yang,
ele pega, levanta e remove. Divinizado como Mestre da chuva (Yushi) e
Conde do vento (Fengbo), eles representam as variações yin yang
do Céu, e simbolizam os rebuliços e emoções no homem.
O
par vento e chuva compõe, com outros 2 pares[vi],
os Seis sopros que representam o conjunto das influências que o Céu envia sobre
a Terra ao longo do ano a fim de [promover] a manutenção a vida.
Quando
a teoria dos Cinco elementos (ou Cinco agentes, wu xing 五行)
se forma, o vento se torna um sopro de natureza associada ao elemento Madeira,
e consequentemente, ao Leste, à Primavera, a aparição da vida etc. Ele é, desse
modo, um dos Cinco sopros que formam o conjunto das influências celestes.
Ele
conserva suas especificidades de base, mas se mistura a outras forças. Ele pode
se combinar com todos os outros sopros, mas não é mais do que um entre eles.
Sua relação com a produção da vida não é senão uma fase do processo.
Ao
mesmo tempo, o vento transferiu uma parte de sua potência simbólica a uma outra
noção que emergiu e ganhou cada vez mais importância: a de sopro.
O
SOPRO (QI 氣)
A noção de sopro emerge de uma dupla
filiação celeste e terrestre.
No caractere qi (氣),
a parte que representa um grão de cereal (米),
nos diz que a nutrição é a base das forças e da animação, enquanto a outra
parte (气)
evoca uma liberação, como uma fumaça que escapa da panela ou o vapor que
ascende.
Os sopros que nos animam fisicamente
e mentalmente vêm das transformações dos produtos da Terra, os sabores que o
homem se apropria pela digestão:
“A boca absorve os sabores (wei
味)
e a orelha os sons. Sons e sabores produzem o sopro (qi 氣).
Para a boca, o sopro se torna fala, para os olhos, ele se torna clarividência (ming
明).[vii]”
O Céu nutre a vida pelos sopros que
ele envia com regularidade e fiabilidade: “O Céu possui Seis sopros, que descem
(à Terra) gerando os Cinco sabores (todas as plantas comestíveis). [...] Estes
Seis sopros são: o yin e o yang [representando aqui o frio e o
calor], o vento e a chuva, a obscuridade e a luz. Eles se distinguem em Quatro
estações e são organizados em Cinco divisões [do ano solar]. Seus excessos
causam as calamidades [que são todos os tipos de maus, em particular, as
doenças].”[viii]
Estes mesmos sopros estão no homem e
constituem o que há de mais humano em sua natureza:
“No homem, o amor e o ódio, a euforia
e a raiva, a aflição e a alegria, são produzidos pelos Seis sopros. É por isso
que conhecê-los a fundo permite regular por analogia, de modo conveniente, as
Seis vontades (intenções, tendências profundas, desejos).”[ix]
O homem possui consciência e
discernimento de maneira diferente dos outros seres. Ele deve isso a sua
composição celeste excepcional. Ele obtém do Céu a inteligência espiritual (shen
ming 神明)
que o permite perceber a ordem natural. Esta última se exprime nas incessantes
transformações dos sopros; sua regularidade e fiabilidade se vê tipicamente na
alternância constante das Quatro Estações, do dia e da noite, da chegada do
vento e da chuva, às vezes inesperada ou mesmo excessiva, mas nunca
impulsionada para a destruição total.
Inspirando-se neste conhecimento, o
homem toma consciência do modo de regular em si os sopros que compõem sua
própria vida e que são puramente análogos a estes que compõem a vida cósmica.
As emoções e desejos são os grandes motores dos sopros e os principais
responsáveis de sua desordem e das patologias que decorrem deles; ele os regra
e se regula segundo o modelo dos sopros do Céu que, ano após ano, se harmonizam
e perpetuam a vida.
Esses sopros do Céu penetram a Terra
como a antiga imagem do vento e penetram o homem de maneira análoga; nele as
“cavernas do vento” (feng xue 風穴)
se tornam “cavernas dos sopros” (qi xue 氣穴),
as múltiplas aberturas pelas quais os sopros penetram o corpo são assim os
pontos de acupuntura.
Eles são múltiplos, mas todos vêm do
“vento imóvel”[x],
do vento que não sopra, que é potencialidade de todos os ventos; é a imagem do
sopro original, potencialidade de todos os sopros e das múltiplas formas de
vida que ele faz surgir.
No homem, os sopros são as forças
vitais ao mesmo tempo físicas e fisiológicas, mentais e psicológicas. Os
movimentos dos membros como o funcionamento orgânico, as emoções como as
intenções, etc.
Responsável por seus sopros, o homem
deve fazer com que eles sejam corretamente renovados, concentrados sem se
espalhar e se perder, guiados em suas atividades pelo conhecimento e a
consciência da ordem natural.
Se o homem tem as responsabilidades
e os modelos de comportamento, é porque há nele, por natureza, uma aptidão para
o conhecer, assim como para discernir e reconhecer isso que faz o sentido da
vida e para penetrar o sentido profundo das coisas ou ordem natural. Ele tem,
portanto, não somente os sopros, mas uma capacidade análoga à potência do Céu,
a qual comanda os sopros, que os mantém em movimento, ritmo e em relação justa.
Isto é o espírito.
SOPRO
E ESPÍRITO
O sopro não é substância, embora os
sopros não possam se manifestar ou existir fora das formas concretas que os
animam pelas incessantes transformações que tecem a vida.
É ele espírito? Questão que pode
receber uma resposta diferente de acordo com os contextos. Não podemos fixar
uma equivalência entre a noção de sopros (qi) e a de espírito (shen),
os caracteres e campos semânticos são diferentes. No entanto, sua diferença se
cruza no mundo sensível, manifesto, e se reduz a nada quando voltamos à unidade.
O sopro original é um com o espírito (shen), com a Via (dao 道),
com a potência que suscita a produção e as transformações de tudo isso que
existe.
Um grande pensador como Zhang Zai
afirma magnificamente no século XI “uma única coisa com uma dupla constituição,
tal é o qi. Nisso que ele é um, ele é espiritual (shen 神);
nisso que ele é dois, ele é transformações (hua 化)”[xi].
Os sopros manifestos e
diversificados podem perder sua relação com a origem, com a ordem natural e se
perverter em suas formas. É por isso que falamos de “sopros perversos” (xie
qi 邪氣),
maléficos, patogênicos, ao passo que o Princípio (li), a Via (dao),
o espírito (shen) permanecem tais como em si mesmos.
O homem responsável pelos seus
sopros e responsável pelo seu espírito, pode corromper este último e
desorganizar os primeiros.
O espírito do homem ou o espírito
vital no homem depende do modo pelo qual o homem conduz sua vida; se ele se
conforma a uma percepção sempre mais profunda do sentido profundo das coisas,
de como procede a vida em si e em todos os seres que povoam o universo; ou bem
ele se deixa seduzir pelos desejos, se levar pelas paixões, conduzindo seus
sopros inoportunamente e obscurecendo com isso sua faculdade de conhecer e seu
discernimento. No primeiro caso, ele desenvolve seu espírito e se torna
semelhante aos espíritos do Céu, companheiro da potência que produz e
transforma; no segundo, ele se desnatura e se perde.
Para regular as emoções, controlar a
sensibilidade e colocar, assim, os sopros vitais a serviço da inspiração
espiritual ou celeste, Zhuang zi insiste sobre a calma que o coração deve
reencontrar:
“Quem aspira por serenidade acalma
seus sopros (qi 氣);
quem aspira o estado espiritual (shen 神)
segue seu coração (xin 心).”[xii]
“O santo se mantém em repouso –
repouso que o assegura equilíbrio e fluência; equilíbrio e fluência o trazem
serenidade e desprendimento. Neste estado de equilíbrio e de fluência, de
serenidade e desprendimento, nenhuma preocupação ou infortúnio podem o
penetrar, nenhum sopro perverso (xie qi 邪氣)
o atacar. Assim, nada prejudica sua virtude (de 德),
nada arruína seus espíritos (shen 神).
Com isso, dizemos da vida do santo que ela é a obra do Céu (tian xing 天行)
e de sua morte que ela é uma transformação dos seres (wu hua 物化).
Na tranquilidade ele é um com a virtude do yin e em movimento ele é um
com a virtude do yang.[xiii]”
ESPÍRITO[xiv]
O caractere comumente traduzido por
“espírito”, shen (神),
designa certamente a origem do espírito de um ancestral falecido, subindo ao
Céu. Os espíritos são as potências que estão no Céu e que exercem um poder
abaixo sobre seus descendentes. Eles são também as potências que comandam os
fenômenos celestes, as forças da natureza, como: o sol e a lua, o relâmpago e o
trovão, o vento e a chuva, a inundação e a seca, o rio e a montanha etc.
Donde provém a utilização de shen
(神)
para espíritos do Céu, por oposição aos espíritos da Terra (gui 鬼)
que são igualmente os demônios e os fantasmas.
Sua ação só pode ser excelente e
perfeita, visto que é celeste, ou seja, sempre expressão do acontecimento e do
desenvolvimento da vida no mundo, da ordem natural, a qual chamamos também de
Céu (tian 天).
Eles estão por trás disso que se
passa no mundo, a fonte das transformações que faz aparecer as múltiplas formas
de vida. Eles são a ordem sagrada da vida em cada fenômeno natural como nos
afazeres humanos. Eles presidem todas as atividades naturais. Constatamos o
resultado da presença dos espíritos, mas não se pode explicar como eles operam,
uma vez que a natureza mesma de seu poder vem de uma ordem superior que escapa
a um entendimento humano limitado.
Os espíritos povoam o mundo que
rodeia o homem; eles estão presentes em toda parte sob múltiplas formas.
Eles penetram também nos seres e
dirigem no homem todos os movimentos de sua psicologia assim como de sua
fisiologia. Um homem “espiritual” é esclarecido, desde o interior, por suas
potências celestes; é um ser inspirado e maravilhosamente sábio.
Nas práticas taoístas, em
particular, eles são as forças que ativam e dirigem as diversas funções vitais;
há assim os espíritos do Fígado e dos olhos, do Estômago e do cérebro etc.
Os espíritos são legiões no corpo,
assim como eles são incontáveis na natureza. Contudo seu número pouco importa,
pois eles permanecem Um, unidos em seu pertencimento ao Céu e sua fidelidade à
fonte da potência vital.
O destino do homem é de tornar-se
cada vez mais semelhante aos espíritos, de tornar a si mesmo um espírito do
Céu, depois da sua morte, mas já durante a sua vida.
A relação dos homens e dos espíritos
é possível, ela se faz pelos espíritos dos ancestrais falecidos no culto aos
ancestrais; ela se faz também por uma relação do que é espírito no homem com o
que é espírito fora dele.
Desse modo, o sentido exato de
espírito depende do contexto de seu emprego e das outras noções com as quais
ele se encontra associado. É uma noção que se enuncia em diversos níveis:
a) Enquanto
exteriores a um ser humano, os espíritos são as potências cósmicas, celestes,
originais, que permitem a cada fenômeno vivo iniciar e desenvolver a cadeia de
mudanças e transformações que compões a existência. Os espíritos manifestam a
ordem natural da vida no cosmos, a qual se vê, por exemplo, pela alternância
regular das Quatro estações, do dia e da noite, na moderação do vento e da
chuva... Essas manifestações harmoniosas se oferecem à nossa inteligência como
um exemplo e um modelo para a condução de nossa própria vida.
b) Esses
mesmos espíritos estão presentes no corpo humano, por eles mesmos e pelo fazer
do homem. No interior de um corpo humano, o espírito, shen, vai ainda
ser compreendido por diversos níveis interdependentes:
-
Os espíritos investem na vida humana desde o início de sua formação, o estado
fetal. Eles fazem parte do investimento original de um humano; eles são a parte
celeste que confere ao homem as qualidades do Céu: iniciativa e mandato, poder
regulador.
-
O espírito de um homem é sua capacidade a conhecer e a tomar consciência, a
exercer seu discernimento e sua inteligência. Ele pode exercer suas faculdades
ao se aproximar do Céu, quer dizer, do natural, de sua natureza primeira; seu
espírito é assim claro e esclarecido, ele conduz sua vida em conformidade à
ordem natural, o que reforça a qualidade de seu espírito. Ou bem ele pode
exercer suas faculdades cedendo à sedução dos sentidos e ao apetite dos desejos,
ou ainda, seguindo os conhecimentos sempre muito numerosos e detalhados sem mais
saber como parar a efervescência do pensamento e a fruição da inteligência; ele
se distancia então de sua natureza primeira e de uma conduta que permite o
desenvolvimento de sua vida tanto espiritual quanto mental ou corporal, ele se
cega e obscurece o espírito.
O homem que realiza plenamente a
potencialidade de seu espírito se torna um homem espiritual, um homem/espírito,
conforme o Céu. Seu espírito, é ele mesmo, sua alma.
A realização do espírito não se faz,
por um humano, fora ou sem o corpo. A completude do corpo é ao mesmo tempo uma
condição e uma consequência do estado espiritual; estado do espírito e estado
corporal estão intrinsicamente ligados.
“Aquele que mantém o Dao
possui uma potência vital completa (virtude, de 德);
esta potência vital completa, é a completude do corpo; a completude do corpo é
a completude do espírito (shen) e a completude do espírito é a Via do
Sábio”[xv].
O estado espiritual é o perfeito uso
dos órgãos dos sentidos, plenitude dos sopros e ordem perfeita de suas trocas e
movimentos.
A interdependência do corpo e do
espírito não exclui em nada a hierarquia. Se o espírito em um homem é dom do
Céu e o corpo dom da Terra, o espírito deve comandar o corpo como o Céu comanda
e a Terra segue; mesmo se a fraqueza do corpo, a falta de alimentação, por
exemplo, pode levar a uma deficiência do espírito na qualidade de funcionamento
do mental.
A vida é a compenetração das
substâncias que formam um corpo humano e dos espíritos – ou do espírito – de
que ele é dotado e do qual ele assume a realização. A morte é seu desfecho.
A
MORTE
A partida dos espíritos significa a
morte e pode ser compreendida em diversos níveis:
- Se consideramos os espíritos como
os sopros do Coração e sua função, a parada cardíaca é a morte.
- Se consideramos os espíritos como
isto que, desde a origem, permite o desenvolvimento da vida, sua partida é
ruptura ou realização da disposição original, a morte.
- Se consideramos os espíritos como “eu”
que me modela sobre o Céu, o natural, então, a morte é a partida em direção ao
Céu desta parte do “eu”, que podemos chamar espíritos (shen), espíritos
vitais (jing shen 精神),
ou almas Hun (魂).
- Se consideramos os espíritos como
o que permite o acesso a realidade das coisas, proporciona a inteligência da
vida, sua ausência é o obscurecimento do mental, a desrazão, a loucura. O homem
pode assim sobreviver em seu corpo, mas sem realizar isto que o faz dele
verdadeiramente um homem: um Coração que bate ao ritmo do universo e o faz
companheiro do desenvolvimento cósmico da vida.
“Ora, o espírito vital (jing shen
精神)
é um dom do Céu enquanto que a forma corporal é fornecida pela Terra. O
espírito vital passará novamente sua porta, os ossos retornarão a sua raiz.
Mais, assim, como “eu” subsistiria para sempre?”[xvi]
ALMAS
HUN & PO
A dupla animação do homem, celeste e
espiritual de um lado, terrestre e corporal de outro, se exprime igualmente em
seus dois grupos de almas: os Hun e os Po.
“Os sopros do Céu formam a alma
espiritual (hun 魂);
os sopros da Terra (di qi 地氣),
a alma corpórea (po 魄).
Que eles retornem a sua residência primordial e cada um guardará sua morada.”[xvii]
As almas terrestres fixam o humano
em um corpo, uma forma, estes são os Po. Elas são responsáveis pela
nossa vida corporal, sensações, reações, impulsos instintivos. O sensitivo e o
vegetativo dependem delas. Os Po são também a força física que sustenta
o dinamismo do ser, o instinto de sobrevivência que torna audaz. Tudo o que é a
vitalidade corporal, animação das substâncias não controladas pela consciência,
atribui aos Po. Os apetites sensoriais e sensuais desenfreados, os
desejos corporais não controlados, devoram e destroem a vitalidade como podem
fazê-los os fantasmas famintos com os quais os Po têm grandes
afinidades.
As
almas Hun são associadas aos sopros (qi), ao Céu e aos espíritos
do Céu (shen), à faculdade de conhecimento e de maneira geral a tudo o
que não é corpóreo, substancial, na vida de um ser. Elas permitem ao humano perceber,
sentir e ressentir, experimentar os sentimentos e construir os pensamentos,
compreender, raciocinar; elas são inteligências, sensibilidade,
espiritualidade, imaginação, sonhos e devaneios, contemplação... elas
desenvolvem conhecimento e consciência à luz dos espíritos do Céu e do Coração.
Elas podem, assim, encontrar na morte seu caminho em direção ao Céu e seus
paraísos.
Hun
e Po vivem como um casal: seu abraço é a vida sobre a Terra; sua
separação, nossa morte. Ao longo da vida, essas almas se carregam de
vitalidade. A qualidade disso que é absorvido e vivido cria uma animação
concreta na qual a potência não é extinta pela dissociação que a morte opera.
Quando eles se separam, cada parceiro retoma seu movimento natural: os Hun,
saem primeiro, eles escapam do corpo pela cabeça (moleira e vértice), para
atingir as alturas onde eles se tornam os Manes gloriosos (ling hun 靈魂)
dos ancestrais, dos espíritos do Céu. Os Po permanecem ligados às
substâncias do corpo, escapam com elas pelos orifícios e se dissolvem pouco a
pouco com elas na Terra.
APARIÇÕES REGRESSANTES E FANTASMAS
Embora os Hun (魂)
correspondam ao Céu e os Po (魄)
a Terra, essas almas dividem um mesmo elemento gráfico: o caractere gui
(鬼).
Este último designa, primeiramente, os espíritos dos mortos, mais
particularmente aqueles ligados à Terra (como os shen são os espíritos
dos ancestrais ligados ao Céu), em seguida, as potências de animação da Terra;
os espíritos dos mortos que voltam a assombrar os vivos, os fantasmas; os
espíritos da Terra como potências maléficas, de demônios perigosos.
O
culto aos ancestrais
O culto aos ancestrais consiste em
cerimônias que fazem “voltar” os espíritos dos ancestrais mortos, atraídos
pelas oferendas e pelo seu laço com seus descendentes.
Antigamente as oferendas específicas
se dirigiam as almas residentes nas alturas do Céu (Hun) e outras
residentes nas profundezas da Terra (Po) afim de atraí-las. Sua reunião
permite a presença dos ancestrais; então, espíritos e Manes regressarão aos
seus lugares de residência acalmados e nutridos pelas oferendas.
O culto aos ancestrais consistindo
assim em fazer retornar ao local do sacrifício os espíritos dos ancestrais,
associamos o termo designando os fantasmas, as aparições, gui (鬼)
com um outro termo homófono, gui (歸)
o qual significa ir a algum lugar, pertencer a algum lugar, voltar, retornar, regressar.
As
aparições regressantes
O que é fundamental é ter um lugar
ao qual nós pertencemos, para não estarmos perdidos, abandonados. É isso que
desejamos durante a nossa vida e é também isso que importa depois da morte.
As almas que não retornam ao seu
lugar ao qual pertencem, no alto ou no baixo, podem errar entre os viventes,
buscando se vingar ou se nutrir; elas são perigosas “aparições regressantes”
que aspiram a vitalidade de um ser ou se agarram a ele para possuí-lo.
A literatura e o imaginário chinês
são repletos de história de fantasmas, de aparições regressantes, de possessão;
é o assunto de incontáveis contos aos quais o Budismo virá trazer sua própria
sensibilidade e suas perspectivas.
Um dos mais antigos textos sobre
esse assunto[xviii]:
“Quando os Manes (espíritos dos
mortos, gui 鬼)
têm um lugar para onde voltar (pertencer, gui 歸),
então eles não fazem nenhum mal. Eu fiz com que (o espírito deste morto)
tivesse um lugar para voltar (gui 歸)
(dei-lhe um lugar de culto e de pessoas responsáveis)... Po You poderia se
tornar um fantasma (gui 鬼)?...
Quando um homem ou uma mulher comum morrem de morte violenta, seus Hun e
seus Po podem assim permanecer entre os humanos e os molestar...”
Com razão, as almas daquele que vem
de uma família poderosa e que gozou do melhor para se nutrir, seu poder de
perturbar é grande e ele se tornará um fantasma (gui 鬼)
terrível.
Poyou era um homem de uma grande
família, o que implica que a vitalidade herdada de seus era de uma qualidade e
de uma força excepcional. Pela mesma razão, ele teve a sua disposição, durante
sua vida, o melhor dos produtos da terra e da arte dos homens. Suas almas são
potentes. Ele é morto antes de ter chegado ao fim de seus dias, de morte
violenta, injustamente assassinado. Uma vitalidade, ainda forte, ligada ao
corpo e a alguns lugares. Sua alma insatisfeita pode voltar para assombrar os
vivos, em particular em torno do local onde ele foi morto. Ávidos das essências
que as nutriram durante a vida, as almas buscam apanha-las onde elas podem,
inclusive em detrimento dos viventes, pelos quais essas almas errantes e
famintas representam, assim, um real perigo.
O jogo de palavras entre os dois
caracteres homófonos, gui (鬼),
espírito do morto, e gui (歸),
voltar; se exerce plenamente; as almas
que não conseguem deixar seu lugar de vidas passadas, por causa de uma
frustração e da violência da morte, retornam a esses lugares, sobretudo se elas
não têm nenhum outro lugar para onde elas sejam atraídas por um culto ou
oferendas.
Tranquilizamos essas lamas vingativas
com oferendas e rituais; as vezes por exorcismos. Evitaremos, sobretudo, os
lugares potencialmente perigosos, como os cemitérios ou os antigos campos de
batalha, em particular, à noite.
Alguns lugares geográficos são
habitados de espíritos perigosos, possivelmente malévolos; é preciso saber como
os evitar ou se defender.
Tentamos também prevenir a aparição
de tais fantasmas prestando respeito aos mortos. Desta forma, todos os anos, no
começo de abril, no dia conhecido como Pura Luz, cada família visita e limpa as
tumbas de seus ancestrais.
Podemos, assim, colocar um pouco de
comida sobre o caminho para evitar que as almas errantes famintas, prestes a
apreender isso que poderia nutri-las, penetre nos corpos dos seres vulneráveis
e o possuam.
Há fantasmas benevolentes fora do
âmbito do culto dos ancestrais? Podemos dizer que há reencontros entre os
espíritos de um homem vivo, seus Hun, e os espíritos dos ancestrais, de
uma divindade, do Céu.
O sonho desempenha um papel
particular nesses reencontros, pois as almas responsáveis pela consciência não
estão mais implicadas no pensamento, nas percepções sensoriais, nos movimentos
corporais voluntários, nas diversas atividades e relações aos outros. Os Hun
podem, dessa forma, sair – momentaneamente – da aliança com o corpo. Assim,
podemos ser visitados pelo espírito de um ancestral ou ir visitá-lo, geralmente
obtemos uma inspiração justa e penetrante. Podemos dormir num templo para ter
sonhos inspirados por uma divindade, que nos dará uma informação chave
permitindo sair de uma situação difícil ou de compreendê-la melhor.
A meditação profunda, o êxtase, o
transe são tantos passeios espirituais, de momentos ou de estados que permitem
o reencontro das almas Hun com os espíritos do mundo, de meu espírito
com o Céu. São essas as viagens dos Hun. Eles são limitados pelo tempo
pela necessidade de se reintegrar ao corpo.
CONCLUSÃO
O vento, os ventos espíritos,
veiculam tudo o que permite a vida sobre a terra, mas também os castigos da
divindade celeste suprema e dos ancestrais.
O Céu envia seus sopros sobre a
Terra afim de que eles suscitem e mantenham a vida; entretanto, em excessos,
esses sopros produzem o mal e as doenças.
Os espíritos (Shen) guiam os
sopros na natureza assim como no corpo do homem.
A vida do homem é uma condensação de
sopros e sua morte é a dispersão deles; ela é um entrelaçamento Céu Terra, yin
e yang, e a morte é a separação deste.
A vida do homem é regida por seu
espírito, que deve se construir por semelhança aos espíritos do Céu para se
integrar a ordem cósmica, natural. O duplo pertencimento do homem se traduz por
esses dois grupos de almas, celestes e terrestres; muito naturalmente, essas
almas celestes (Hun) tem uma parte ligada aos espíritos do Céu (shen).
Depois da morte, as almas voltam normalmente a visitar seus descendentes
durante o culto aos ancestrais.
Mas elas voltam também como
fantasmas perigosos quando elas não têm para onde retornar (lugar do culto) ou
quando elas são atraídas por um lugar (por exemplo, aquele do assassinato) ou
guiadas por um desejo de vingança.
A força dessas almas depende da
força da vitalidade, a qual ela própria depende de diversas coisas: a
hereditariedade, ou seja, a potência vital própria a uma linhagem, em
particular uma linhagem de príncipes; a abundância e a qualidade das comidas
terrestres e humanas; assim como uma conduta esclarecida da vida e a pureza do
coração. É o espírito do homem que é o responsável por essa conduta esclarecida
da vida. Assim, o espírito vital (jing shen) de um homem pode retornar (gui
歸)
a seu lugar de pertencimento autêntico: o Céu, o Dao, numa parceria que
não tem fim.
Bibliografia:
Chunqiu
zuozhuan: texto dos séculos quinto e quarto A.C. (modificados sob os Han).
Huainan
zi: obra em 21 capítulos, do século 2 A.C.
Shuowen
jizi: obra lexicográfica do início do século 1 D.C.
Zhengmeng
(retificar as ignorâncias juvenis): obra de Zhang Zai (1020-1077).
Zhuang
zi: obra em 33 capítulos, dos séculos quarto e terceiro A.C.
Guo
yu: Considerações sobre os Principados Zhouyu, Tradução de André d´Hormon,
complementado por Rémi Mathieu, Memórias do Instituto de Altos Estudos
Chineses, Paris, 1985.
Anne
Cheng, História do pensamento Chinês. Le Seuil, Paris, 1997.
[i] Esse artigo se baseia principalmente em textos chineses anteriores
à Era Cristã, com algumas incursões em textos posteriores a esta era.
[ii] A fênix é um signo de bom augúrio; seu advento testemunha a virtude
do soberano e anuncia uma era de prosperidade e paz.
[iii] O culto aos antepassados é a mais antiga e persistente forma
religiosa na China.
[iv] Na medicina chinesa, o vento patológico é caracterizado pela
subitaneidade e pelo grande número de mudanças que ele ocasiona no organismo.
[v] Shuowen jiezi.
[vi] O yin e o yang representam o frio que reina à sombra
e o calor que reina ao sol, e a claridade e obscuridade representam o dia e a
noite. Ver mais sobre isso em Chunqiu Zuozhuan, Zhaogong primeiro ano.
[vii] Guoyu, 1985, p.312.
[viii] Chunqiu Zuozhuan, primeiro ano do Duque Zhao.
[ix] Chunqiu Zuozhuan, vigésimo quinto ano do Duque de Zhao.
[x] Ver, por exemplo, o início do capítulo 2 de Zhuangzi.
[xi] A. Cheng, 1997, p.417 e seguinte. Do mesmo modo, Zhu Xi (1130-1200)
apresenta o sopro (qi 氣) e o princípio (li
理) como indissociáveis e unidos no mesmo Fato supremo.
[xii] Zhuang zi, capítulo 23.
[xiii] Zhuang zi, capítulo 15.
[xiv] Estamos, obviamente, longe de cobrir aqui toda a riqueza e a
variedade da noção de shen, espírito.
[xv] Zhuang zi, capítulo 12.
[xvi] Huainan zi, capítulo 7.
[xvii] Huainan zi, capítulo 9.