terça-feira, 9 de julho de 2024

Jejum do Coração

ZHUANG ZI Cap. IV (parte)


Um dia Yen Houei (Yan Hui) foi encontrar seu mestre Confucius, e lhe pediu permissão para iniciar uma viagem.

- Para ir aonde? Questionou o Mestre.

- Para Wei.

- Fazer o que?

- Eu soube que o príncipe de Wei jovem e autoritário. Ele não tem nenhuma consideração pelo sofrimento do seu povo, e é incapaz de voltar atrás quando está errado. A morte de seus súditos o deixa indiferente. Os cadáveres juncam o campo como as ervas recobrem o pântano. O povo não sabe mais para que santo fazer promessa. O senhor nos ensinou que devemos sair dos países em paz para nos dirigir aos principados vítimas de desordem, pois são os doentes que têm mais necessidade de médico: então eu pensei que poderia tirar proveito de vossas lições e levar algum alívio a esse país infeliz.

-Peuh! Você só encontrará obstáculos! É preciso que nunca se tenha muitas ideias na ação. Quem tem muitas ideias tem o espírito confuso, o espírito confuso se abandona a tristes reflexões, e quem está na fossa nunca chega a nada. O homem superior de outrora se servia dos seus próprios recursos antes de recorrer àqueles dos outros. Mas quando não se está nem mesmo seguro de suas próprias capacidades, como poderia intervir aonde assola um louco furioso. Sabes, meu pequeno, o que turva a virtude, e o que produz a astúcia?

O desejo de glória turva a virtude, e da astúcia nasce o espírito de competição. Assim o desejo de glória é fonte de discórdia e a astúcia é o arauto da luta pela dominação. Aqui temos dois instrumentos funestos; não é através destes meios que se chega aos fins desejados. Todavia, não creias amansar teu interlocutor pela tua virtude ou tua sinceridade nem mesmo quando a reputação ou o espírito de conciliação encontrarem o caminho do seu coração. Ao querer convencer por toda força um tirano, lhe servindo homilias moralizantes sobre a caridade ou a justiça, ou lhe colocando debaixo do nariz um conjunto de leis, você só terá conseguido, às custas dele, fazer resplandecer teus méritos. Chamamos isso procurar barulho. Quem procura encrenca, não deve se surpreender quando procurarem encrenca de volta. É isso que me faz temer que te aconteça uma desgraça. Ainda mais que essas pessoas por mais que pareçam se comprazer na companhia dos homens de bem e fugir daquela dos vadios/patifes, não deixam de se aborrecer quando nos singularizamos, fazendo valer nossas qualidades. Além do que você não recebeu nenhuma missão oficial. Nessas circunstâncias, os grandes desse mundo saberiam aproveitar sua posição para te esmagar. Teus olhos estarão deslumbrados, você tomará um ar conciliador, tua boca procurará te justificar. Insensivelmente você se modelara sobre ele, no seu jeito e por fim o imitará até na maneira de pensar. É combater o incêndio com fogo, e a inundação com água; é o que chamamos agravar os males que pretendemos curar. Pois, quando começamos por nos mostrar flexíveis nunca terminamos de transigir. Por outro lado, se antes mesmo de ter captado sua confiança você usa seu tom franco de falar, você perecerá pelas mãos do déspota.

O tirano Kie matou o sábio ministro Kouan Long fong (Guan Long feng); Tcheou (Zhou), o último soberano degenerado da dinastia Yin, executou seu tio o príncipe Pi-kan (Bi-gan); essas duas vítimas do dever acreditavam que poderiam se prevalecer da pureza de seus costumes para proteger o povo dos abusos de seu mestre, embora ocupassem uma posição subalterna, e sujeitos a desafiar a autoridade do príncipe. É por isso que seus soberanos decidiram eliminá-los em razão da sua moralidade, grande demais. Eis onde leva a sede de renome! O santo rei Yao agrediu as pequenas tribos de Ts’ong-tche e de Hsiu-ngao e o grande rei Yu o país de Yeou-bou. Eles devastaram os territórios e massacraram seus habitantes. Eles não cessaram de dirigir campanha sobre campanha com o único objetivo de aumentarem suas possessões. Você não compreendeu que esses pretensos grandes homens estavam todos ávidos, uns de glória, outros de bens materiais? Enquanto até os maiores sábios não conseguiram resistir à atração da glória e das riquezas, você sozinho poderá conseguir isto?

Mas sem dúvida você tem uma ideia na cabeça. Fale, vamos!

Então Yen Houei (Yan Hui) disse: - Não basta que eu seja respeitoso e modesto e que me mantenha desconfiado?

- Isso não funcionará de jeito nenhum! O príncipe é tão cheio de si mesmo e tão imprevisível que até seus familiares não sabem como se comportar com ele. Esse tipo de homem, que se serve do medo que inspira para dobrar o coração dos outros à sua própria vontade, não podendo se modificar até nas pequenas coisas, como poderia se tornar virtuoso? Ele insistirá na sua conduta, e não se deixará corrigir. E mesmo que ele se mostre conciliador por fora, nada terá mudado em seu interior. Como esse método funcionaria?

- Então, firme nas minhas ideias me mostrarei flexível nas aparências, usarei fórmulas já feitas e me esconderei atrás dos precedentes. Sendo firme no essencial, eu me colocarei sob a tutela do Céu; sabendo que sou tanto seu filho quanto o próprio filho do Céu, falarei sem me preocupar que ele me aprove ou desaprove. Comportar-se assim, é possuir a candura das crianças. Eis o que eu chamo de colocar-se sob a tutela do Céu. Respeitando as formas, eu me coloco na escola dos homens. Levantar a plaqueta, se ajoelhar, curvar-se, são atos cerimoniais que todo súdito executa na presença do soberano. Eu farei tudo como eles. Imitar os outros para não me expor à repreensão, eis o que eu chamo colocar-se na escola dos homens. Usando fórmulas já prontas e me escondendo atrás dos precedentes, eu serei o porta-voz dos ancestrais. De modo que eu poderei dispensar conselhos, esbanjar críticas e dar mostra da maior franqueza sem chocar, pois não serei eu que me expressarei, mas os sábios de outrora. Eis o que entendo por ser porta-voz dos ancestrais. Isso pode funcionar?

- Não, não e não! Muito errado! Muitas condutas variadas não lhe permitirão encontrar a abertura. Mesmo que você consiga não atrair sua ira, isso é tudo que terá obtido, como pode esperar convertê-lo com tais meios? Na verdade, você permanece sempre prisioneiro da intenção.

- Mestre, eu não tenho a mínima ideia, posso então perguntar-lhe o que o senhor faria?

- Jejua, e te direi o que fazer. Pois se eu procedesse enquanto você ainda está cheio, isso seria usar uma forma insolente com o Céu; quem trata insolentemente com ele, não pode se beneficiar de sua benção.

- Minha família é pobre, já são meses que não como carne e não bebo vinho. Será que isto pode ser um jejum? Perguntou o discípulo.

- Isto é o jejum do sacrifício, não é o jejum do coração.

- O que será então o jejum do coração?

- Concentre a tua vontade. Não escute com as tuas orelhas, mas com o teu espírito. Não escute com teu espírito, mas com teu sopro. O ouvido se limita aos sons, o espírito às representações, enquanto o sopro forma uma cavidade apta a acolher o mundo exterior. A máxima proposta da ação se coloca somente sobre este vazio. Assim é o jejum do coração: o vazio sobre o qual se fixa à máxima proposta da ação.

- Eu ainda não tenho esta maestria já que eu sou ainda eu mesmo, diz Yen Houei (Yan Hui). Se a possuísse, já não seria eu mesmo. Será que é isto que se entende por “vazio”?

- Você entendeu tudo! Exclamou Confucius e prosseguiu: - Eu vou te dizer, quando estiver no fosso dos leões, não se deixe impressionar pelos títulos. Se você sentir que será ouvido, vá em frente; se perceber reticências, pare imediatamente. Não apresente nem aberturas nem asperezas. Unifique a tua morada, se apoie sobre a necessidade e estará quase lá. É fácil esconder seus traços, mas não é fácil andar sem tocar a Terra; quem age de acordo com a norma do Homem cai facilmente no artifício, mas não aquele que se conforma à ação do Céu. Todos ouviram falar de seres que voam com asas, mas não os que voam sem asas, que conhecem pelo conhecimento, mas não pelo não conhecimento. Olha para esta porta fechada: no interior, o quarto vazio se ilumina de brancura! A felicidade é para quem sabe parar. Aqueles que não sabem parar, galopam até sentados. Quando a audição e a vista se comunicam com o interior e a inteligência e a razão são banidas para fora, os deuses vêm morar em você, o que dizer dos homens? É o que se chama operar a transformação dos Dez mil seres. Assim é o nó de sabedoria de Yue Chouen (Shun) este o princípio permitiu a Fou-hsi (Fu Xi) e a Ti-kou (Ji Qu) irem até o termo de sua existência; será que não valeria para nós, pessoas ordinárias?




Trad. do chinês para o francês: Jean Levi

Trad. do francês para o português: Rosines Veras, Tony Gelband e MCristina Vidal





Lançamento de livro em agosto 24 "Fu Extraordinários"