Texto do Dr. Jean-Marc Eyssalet , médico acupunturista francês.
Tradução do francês por Tony Gelband.
Numa situação terapêutica, sempre considerei que a escuta dos consultantes representa por si mesma um ato de abertura e de acolhimento, cuja fonte existencial é originalmente não-ativa.
É a partir desta “não–atividade ativa” que se juntam o caráter global, a
intensidade difícil de cercar, mas fortemente atual do encontro e do afinamento
espontâneo da receptividade clínica em todas as suas formas.
É somente a partir do próprio coração, este desconhecido
intensamente vivo, que pode se escutar com as orelhas, com os olhos, o
“coração” a fim de testemunhar o que aparece e advém, com autenticidade.
XU XIN, O CORAÇÃO-ESPÍRITO VAZIO
O médico chinês da tradição é qualificado de Xu Xin, “coração desocupado”
/ “coração vazio”, para bem sublinhar este acolhimento, esta intensidade de
presença sem “a priori”, esta receptividade disponível que é possível
somente quando, num primeiro tempo, ele abandona os próprios conhecimentos, os
próprios gráficos.
Aceitar primeiramente apreender através da presença do paciente
pressupõe aceitar não saber, não procurar ansiosamente concluir muito
facilmente.
Isto significa também que o terapeuta deve saber escutar o conjunto da
situação através do seu próprio terreno, seu próprio corpo.
O que ele aprende de mais
importante sobre o paciente decorre inevitavelmente de uma interação, porque é
através da sutileza de identificação das suas sensações, das suas intuições,
dos seus pensamentos que ele terá a capacidade de avaliar a natureza do terreno
do paciente e das perturbações que o incomodam.
O médico da tradição deve, portanto, “escutar-se escutando o outro”, o
que presume uma consciência dinâmica e afinada do seu próprio corpo, do seu
próprio sopro e das variações sutis às quais o submete ao “risco” de um
verdadeiro encontro.
A ESCUTA DE ACORDO COM OS GRANDES CLÁSSICOS DA ACUPUNTURA
• Obter ou perder Shen
Evoca-se, muitas vezes, nos textos antigos da medicina interna (Nei
Jing, Su Wen e LIng Shu), a atitude interior que deveria, no
terapeuta, predominar sobre qualquer outra consideração, e lhe permitir obter a
atenção interior, a acuidade na escuta do próprio paciente, assim como a sua
disponibilidade corporal.
Assim podemos ler no Su Wen 13:
“Qi Bo diz: - Para tratar, uma coisa domina todas as outras.
Huang Di responde: - Qual é esta coisa primordial (única)?
Qi Bo responde: - Se obtém pelo único [aquilo que é de primeira necessidade].
O Imperador diz: - Mas de que se trata?
Qi Bo responde: - Fecha-se as portas e as janelas, o médico se amarra ao [espírito do]
doente, o questiona frequentemente sobre os seus sentimentos e se aplica a
conhecer suas ideias, suas intenções. Obter o Shen [o espírito
individual] é a saúde florescente, perder o Shen, é a destruição [a
morte].
O Imperador Amarelo diz: - Está bem.”
• O Shen do paciente: O espírito como RELAÇÃO
Shen traduzido por “espírito individual” é a configuração energética obtida
potencialmente, de cada novo ser desde a concepção, pela conjunção entre as
energias procriadoras dos pais, assim como pelos aportes inatos das linhagens
paternas e maternas, com as energias adquiridas no meio de acolhimento
(Céu-Terra, respiração e substratos alimentares).
Na visão chinesa, Shen não condiciona apenas o espírito, mas também
o corpo do paciente. Ele não condiciona somente a expressão do psiquismo
individual, mas também, a qualidade, a maneira através da qual ele vê o mundo e
o conjunto do seu meio ambiente.
Se o coração Xin é o receptáculo da consciência e da escuta, o espírito
Shen é o seu artesão dinâmico, o tecelão.
Shen, o espírito individual é a “força incitativa” que condiciona não somente
a qualidade pela qual cada um tece e “destece” o mundo na própria consciência,
mas também aquela pelo intermédio da qual ele fixa um corpo provido de formas
variáveis e características (rosto, silhueta, voz...).
O Su Wen 26 mostra até que ponto este espírito individual pode
ser descrito num modo concreto e pragmático:
“A manutenção de Shen necessita da supervisão do estado do corpo,
da abundância do sangue, do Qi das energias nutritivas (Rong) e
das energias defensivas (Wei) que são o Shen humano, e que é
indispensável ser cuidado com zelo”.
O Su Wen 14 expressa
também que a impossibilidade de mobilizar o espírito do paciente, sua presença
e sua atenção interessada é uma causa de mau prognóstico, e até mesmo
incurabilidade:
“O Imperador pergunta: “O que acontece quando a forma corporal é
defeituosa, o sangue está esgotado e não se chega a nenhum resultado? ...
Porque isto?
Qi Bo responde: - É porque o espírito individual se mostra indisponível.
O Imperador replica: - O que significa esta indisponibilidade do
espírito?
Qi Bo diz então: - É a via daqueles que manipulam agulhas e ponteiras, os
espíritos portadores do princípio vital (Jing Shen) não avançam mais, a
capacidade realizadora e a ideação (Zhi – Yi) perderam seu poder de
ordenamento, é por isto que a doença não pode ser curada. A indisponibilidade
do paciente é, então, um fracasso no estabelecimento desta relação e a causa
essencial de uma resposta medíocre ao tratamento.”
•
O SHEN DO TERAPEUTA: O ESPÍRITO COMO LOCAL DA INTUIÇÃO
O Su Wen 26 evoca a intuição do terapeuta a respeito de uma
pergunta colocada sobre a definição de Shen, o espírito.
Os chineses têm horror das definições de caráter preciso, direto e
conceitual. Podemos ver aqui a ilustração disto através de uma evocação poética
numa linguagem sublime, da intuição que surge no coração do sujeito que escuta.
“O Imperador pergunta: - O que chamamos de Shen?
Qi Bo responde: - Deixe- me, por favor, lhe falar dele. Shen, ah Shen!
...as orelhas não podem ouvir, mas os olhos brilham, o Coração se abre e o
sentimento interior se impõe. Aquilo que nos acorda para ver, através de uma
abertura repentina da intuição e cuja boca não pode dar conta com palavras,
aquilo que se está sozinho a ver, enquanto todos os outros observam, aquilo que
se apresentava há pouco como velado, escurecido, e
se ilumina de repente enquanto
se está só a receber a claridade, como o vento que, ao soprar [dispersa] as
nuvens. É isto que Shen quer dizer...”.
O Su Wen 25, sem utilizar uma só vez a palavra Shen,
propõe, neste mesmo modelo uma evocação da presença habitada do terapeuta que
escuta e vê as reuniões e os desenvolvimentos da energia no corpo do seu
paciente, antecipando os movimentos para agir no momento certo, como um
atirador:
“Com a intencionalidade plena de serenidade se contempla os índices e se
observa as mudanças que acontecem [debaixo de nossos olhos]. É o que se chama
percepção no próprio coração do obscuro, daquilo que permite distinguir a
forma: É ver [a energia – sopro aparecer como] um voo de corvos, é observar o
conjunto semelhante às espigas carregadas de painço, é dirigir o olhar para
esta decolagem sem identificar quem ou qualquer coisa que seja. O médico,
escondido como um besteiro, surge [como uma flecha] no desencadeamento do
mecanismo”.
É assim que uma mudança no brilho dos olhos e da luz ou da expressão do
rosto podem ser constatadas no tempo de um clarão, de uma palavra, da colocação
de uma agulha determinante.
O olhar sobre o corpo do paciente deitado pode revelar zonas deficientes
ou locais ativos, a presença ou ausência do paciente no interior de seu próprio
terreno.
A inspeção da língua esclarece sobre as capacidades de transformação dos
alimentos e dos líquidos pelos órgãos vitais, assim como sobre a qualidade das
trocas internas.
•
ESCUTA E INTERAÇÃO DOS RITMOS VITAIS
O coração vazio, Xu Xin, lembra, na sua formulação todas as
passagens, os leitos e os canais que conduzem o sopro vital ao conjunto do
corpo e dos quais o coração representa de certa forma a caverna “mestra”.
Apesar de tratar-se primeiramente da abertura do espírito do sujeito, de
uma atenção gerando uma receptividade sem obstáculo, não se poderia separá-la,
do ponto de vista chinês, de uma vacuidade dinâmica que se estende ao conjunto
dos vales musculares nos quais circulam artérias, veias e meridianos (Jing
Mai) balizados pelas suas pequenas cavernas periódicas, os Xue ou
pontos de acupuntura. O coração, na sua vacuidade, centraliza todas as
circulações rítmicas e favorece a propagação do vazio, de um local de
passagem para outro, de acordo com um movimento ininterrupto que revela
a ligação dinâmica de tudo que contribui para a expressão da vida e conduz suas
modulações.
Durante a tomada dos pulsos radiais, por exemplo, o médico chinês, cuja
“vacuidade do coração” representa a qualidade primeira, deve encarar o seu
paciente para registrar o brilho de seus olhos, o Jing Ming. Ele unifica
e regulariza então a sua própria respiração para poder estabelecer um
verdadeiro ciclo com o seu paciente e avaliar eventuais anomalias no seu
movimento respiratório. (Su Wen cap. 17 e 18). Aqui então a vacuidade do
coração pode orientar não somente a receptividade do olhar para uma
manifestação essencial do espírito do paciente (o brilho dos olhos em primeiro
lugar), mas ela induz, no terapeuta, um ajuste de seus sopros vitais pela
harmonização de sua respiração numa intensidade de presença cujos efeitos podem
ser comunicativos para a respiração e o pulso no paciente.
Um texto tirado do Tratado da Flor de Ouro do Supremo Um (Tai Yi Hua Zong
Ji) atribuído a um dos oito imortais Mestre Lu Dong Bing, propõe uma
alegoria muito esclarecedora
sobre a escuta do coração e a transmissão espontânea do sopro vital que reanima
o espírito; nele reencontramos as noções de ética natural e de cuidados:
“No livro de cinabre é dito que: a galinha pode chocar seus ovos porque
o coração dela escuta sempre. Aqui está uma fórmula importante e sutil, porque
a razão pela qual a galinha é capaz de transmitir a vida para seus ovos provém
do sopro vital amornado. O sopro morno vê, no entanto, seu poder limitar-se ao
aquecimento das cascas e não consegue (por si mesmo) penetrar no centro de cada
um. É por isso que (a galinha), com a ajuda do seu coração (coração-espírito Xin)
guia o sopro e o faz penetrar, e isto pela escuta (que ela realiza). Seu
coração unificado se torna um fluxo só. Quando o coração-espírito penetra, o
sopro o acompanha, os pintinhos integram o sopro morno e tomam vida “.
•
REENCONTRO
AUTÊNTICO
O verdadeiro encontro é a mola sutil da renovação do espírito, quer
dizer aquela dos dois centros conscientes, o do paciente e aquele do terapeuta.
Nesta atenção global, o consultante se expressa e seu corpo fala sem que
se possa separar estes dois modos de uma expressão de conjunto finalmente
indissociável.
Esta totalidade que transborda de todos os lados da fratura soma-psique,
representa aquilo que os antigos chineses chamavam de Shen, “o espírito
individual”. Shen engloba todos os aspectos em curso, testemunhados pelo
nosso olhar naquele instante mesmo, dos mais impalpáveis aos mais densos, sem
disjunção, sem ruptura.
Assim o tratamento determinado será mais a tradução esclarecida de um
encontro autêntico do que a aplicação mais ou menos sistemática de um
protocolo e poderemos dizer
com o médico do Imperador Amarelo, Qi Bo: “geralmente na arte da
acupuntura, a prioridade absoluta é de se enraizar no espírito”.
Segundo a nossa interpretação este espírito não é nem o do paciente nem
o do terapeuta, mas o do encontro.
