sábado, 15 de junho de 2024

ESCUTAR-SE AO ESCUTAR O OUTRO OU A TRANSFORMAÇÃO MÚTUA

Texto do Dr. Jean-Marc Eyssalet , médico acupunturista francês.

Tradução do francês por Tony Gelband.


Numa situação terapêutica, sempre considerei que a escuta dos consultantes representa por si mesma um ato de abertura e de acolhimento, cuja fonte existencial é originalmente não-ativa.

É a partir desta “não–atividade ativa” que se juntam o caráter global, a intensidade difícil de cercar, mas fortemente atual do encontro e do afinamento espontâneo da receptividade clínica em todas as suas formas.

É somente a partir do próprio coração, este desconhecido intensamente vivo, que pode se escutar com as orelhas, com os olhos, o “coração” a fim de testemunhar o que aparece e advém, com autenticidade.


XU XIN, O CORAÇÃO-ESPÍRITO VAZIO


O médico chinês da tradição é qualificado de Xu Xin, “coração desocupado” / “coração vazio”, para bem sublinhar este acolhimento, esta intensidade de presença sem “a priori”, esta receptividade disponível que é possível somente quando, num primeiro tempo, ele abandona os próprios conhecimentos, os próprios gráficos.

Aceitar primeiramente apreender através da presença do paciente pressupõe aceitar não saber, não procurar ansiosamente concluir muito facilmente.

Isto significa também que o terapeuta deve saber escutar o conjunto da situação através do seu próprio terreno, seu próprio corpo.

O que ele aprende de mais importante sobre o paciente decorre inevitavelmente de uma interação, porque é através da sutileza de identificação das suas sensações, das suas intuições, dos seus pensamentos que ele terá a capacidade de avaliar a natureza do terreno do paciente e das perturbações que o incomodam.

O médico da tradição deve, portanto, “escutar-se escutando o outro”, o que presume uma consciência dinâmica e afinada do seu próprio corpo, do seu próprio sopro e das variações sutis às quais o submete ao “risco” de um verdadeiro encontro.


A ESCUTA DE ACORDO COM OS GRANDES CLÁSSICOS DA ACUPUNTURA

                   Obter ou perder Shen

Evoca-se, muitas vezes, nos textos antigos da medicina interna (Nei Jing, Su Wen e LIng Shu), a atitude interior que deveria, no terapeuta, predominar sobre qualquer outra consideração, e lhe permitir obter a atenção interior, a acuidade na escuta do próprio paciente, assim como a sua disponibilidade corporal.

Assim podemos ler no Su Wen 13:

Qi Bo diz: - Para tratar, uma coisa domina todas as outras.

Huang Di responde: - Qual é esta coisa primordial (única)?

Qi Bo responde: - Se obtém pelo único [aquilo que é de primeira necessidade].

O Imperador diz: - Mas de que se trata?

Qi Bo responde: - Fecha-se as portas e as janelas, o médico se amarra ao [espírito do] doente, o questiona frequentemente sobre os seus sentimentos e se aplica a conhecer suas ideias, suas intenções. Obter o Shen [o espírito individual] é a saúde florescente, perder o Shen, é a destruição [a morte].

O Imperador Amarelo diz: - Está bem.”


                   O Shen do paciente: O espírito como RELAÇÃO

Shen traduzido por “espírito individual” é a configuração energética obtida potencialmente, de cada novo ser desde a concepção, pela conjunção entre as energias procriadoras dos pais, assim como pelos aportes inatos das linhagens paternas e maternas, com as energias adquiridas no meio de acolhimento (Céu-Terra, respiração e substratos alimentares).

Na visão chinesa, Shen não condiciona apenas o espírito, mas também o corpo do paciente. Ele não condiciona somente a expressão do psiquismo individual, mas também, a qualidade, a maneira através da qual ele vê o mundo e o conjunto do seu meio ambiente.

Se o coração Xin é o receptáculo da consciência e da escuta, o espírito Shen é o seu artesão dinâmico, o tecelão.

Shen, o espírito individual é a “força incitativa” que condiciona não somente a qualidade pela qual cada um tece e “destece” o mundo na própria consciência, mas também aquela pelo intermédio da qual ele fixa um corpo provido de formas variáveis e características (rosto, silhueta, voz...).

O Su Wen 26 mostra até que ponto este espírito individual pode ser descrito num modo concreto e pragmático:

“A manutenção de Shen necessita da supervisão do estado do corpo, da abundância do sangue, do Qi das energias nutritivas (Rong) e das energias defensivas (Wei) que são o Shen humano, e que é indispensável ser cuidado com zelo”.

O Su Wen 14 expressa também que a impossibilidade de mobilizar o espírito do paciente, sua presença e sua atenção interessada é uma causa de mau prognóstico, e até mesmo incurabilidade:

O Imperador pergunta: “O que acontece quando a forma corporal é defeituosa, o sangue está esgotado e não se chega a nenhum resultado? ... Porque isto?

Qi Bo responde: - É porque o espírito individual se mostra indisponível.

O Imperador replica: - O que significa esta indisponibilidade do espírito?

Qi Bo diz então: - É a via daqueles que manipulam agulhas e ponteiras, os espíritos portadores do princípio vital (Jing Shen) não avançam mais, a capacidade realizadora e a ideação (Zhi – Yi) perderam seu poder de ordenamento, é por isto que a doença não pode ser curada. A indisponibilidade do paciente é, então, um fracasso no estabelecimento desta relação e a causa essencial de uma resposta medíocre ao tratamento.”


                   O SHEN DO TERAPEUTA: O ESPÍRITO COMO LOCAL DA INTUIÇÃO

 

O Su Wen 26 evoca a intuição do terapeuta a respeito de uma pergunta colocada sobre a definição de Shen, o espírito.

Os chineses têm horror das definições de caráter preciso, direto e conceitual. Podemos ver aqui a ilustração disto através de uma evocação poética numa linguagem sublime, da intuição que surge no coração do sujeito que escuta.

“O Imperador pergunta: - O que chamamos de Shen?

Qi Bo responde: - Deixe- me, por favor, lhe falar dele. Shen, ah Shen! ...as orelhas não podem ouvir, mas os olhos brilham, o Coração se abre e o sentimento interior se impõe. Aquilo que nos acorda para ver, através de uma abertura repentina da intuição e cuja boca não pode dar conta com palavras, aquilo que se está sozinho a ver, enquanto todos os outros observam, aquilo que se apresentava há pouco como velado, escurecido, e

se ilumina de repente enquanto se está só a receber a claridade, como o vento que, ao soprar [dispersa] as nuvens. É isto que Shen quer dizer...”.

O Su Wen 25, sem utilizar uma só vez a palavra Shen, propõe, neste mesmo modelo uma evocação da presença habitada do terapeuta que escuta e vê as reuniões e os desenvolvimentos da energia no corpo do seu paciente, antecipando os movimentos para agir no momento certo, como um atirador:

“Com a intencionalidade plena de serenidade se contempla os índices e se observa as mudanças que acontecem [debaixo de nossos olhos]. É o que se chama percepção no próprio coração do obscuro, daquilo que permite distinguir a forma: É ver [a energia – sopro aparecer como] um voo de corvos, é observar o conjunto semelhante às espigas carregadas de painço, é dirigir o olhar para esta decolagem sem identificar quem ou qualquer coisa que seja. O médico, escondido como um besteiro, surge [como uma flecha] no desencadeamento do mecanismo”.

É assim que uma mudança no brilho dos olhos e da luz ou da expressão do rosto podem ser constatadas no tempo de um clarão, de uma palavra, da colocação de uma agulha determinante.

O olhar sobre o corpo do paciente deitado pode revelar zonas deficientes ou locais ativos, a presença ou ausência do paciente no interior de seu próprio terreno.

A inspeção da língua esclarece sobre as capacidades de transformação dos alimentos e dos líquidos pelos órgãos vitais, assim como sobre a qualidade das trocas internas.

 

                   ESCUTA E INTERAÇÃO DOS RITMOS VITAIS

 

O coração vazio, Xu Xin, lembra, na sua formulação todas as passagens, os leitos e os canais que conduzem o sopro vital ao conjunto do corpo e dos quais o coração representa de certa forma a caverna “mestra”.

Apesar de tratar-se primeiramente da abertura do espírito do sujeito, de uma atenção gerando uma receptividade sem obstáculo, não se poderia separá-la, do ponto de vista chinês, de uma vacuidade dinâmica que se estende ao conjunto dos vales musculares nos quais circulam artérias, veias e meridianos (Jing Mai) balizados pelas suas pequenas cavernas periódicas, os Xue ou pontos de acupuntura. O coração, na sua vacuidade, centraliza todas as circulações rítmicas e favorece a propagação do vazio, de um local de passagem para outro, de acordo com um movimento ininterrupto que revela a ligação dinâmica de tudo que contribui para a expressão da vida e conduz suas modulações.

Durante a tomada dos pulsos radiais, por exemplo, o médico chinês, cuja “vacuidade do coração” representa a qualidade primeira, deve encarar o seu paciente para registrar o brilho de seus olhos, o Jing Ming. Ele unifica e regulariza então a sua própria respiração para poder estabelecer um verdadeiro ciclo com o seu paciente e avaliar eventuais anomalias no seu movimento respiratório. (Su Wen cap. 17 e 18). Aqui então a vacuidade do coração pode orientar não somente a receptividade do olhar para uma manifestação essencial do espírito do paciente (o brilho dos olhos em primeiro lugar), mas ela induz, no terapeuta, um ajuste de seus sopros vitais pela harmonização de sua respiração numa intensidade de presença cujos efeitos podem ser comunicativos para a respiração e o pulso no paciente.

Um texto tirado do Tratado da Flor de Ouro do Supremo Um (Tai Yi Hua Zong Ji) atribuído a um dos oito imortais Mestre Lu Dong Bing, propõe uma

alegoria muito esclarecedora sobre a escuta do coração e a transmissão espontânea do sopro vital que reanima o espírito; nele reencontramos as noções de ética natural e de cuidados:

“No livro de cinabre é dito que: a galinha pode chocar seus ovos porque o coração dela escuta sempre. Aqui está uma fórmula importante e sutil, porque a razão pela qual a galinha é capaz de transmitir a vida para seus ovos provém do sopro vital amornado. O sopro morno vê, no entanto, seu poder limitar-se ao aquecimento das cascas e não consegue (por si mesmo) penetrar no centro de cada um. É por isso que (a galinha), com a ajuda do seu coração (coração-espírito Xin) guia o sopro e o faz penetrar, e isto pela escuta (que ela realiza). Seu coração unificado se torna um fluxo só. Quando o coração-espírito penetra, o sopro o acompanha, os pintinhos integram o sopro morno e tomam vida “.


                   REENCONTRO AUTÊNTICO

 

O verdadeiro encontro é a mola sutil da renovação do espírito, quer dizer aquela dos dois centros conscientes, o do paciente e aquele do terapeuta.

Nesta atenção global, o consultante se expressa e seu corpo fala sem que se possa separar estes dois modos de uma expressão de conjunto finalmente indissociável.

Esta totalidade que transborda de todos os lados da fratura soma-psique, representa aquilo que os antigos chineses chamavam de Shen, “o espírito individual”. Shen engloba todos os aspectos em curso, testemunhados pelo nosso olhar naquele instante mesmo, dos mais impalpáveis aos mais densos, sem disjunção, sem ruptura.

Assim o tratamento determinado será mais a tradução esclarecida de um encontro autêntico do que a aplicação mais ou menos sistemática de um

protocolo e poderemos dizer com o médico do Imperador Amarelo, Qi Bo: “geralmente na arte da acupuntura, a prioridade absoluta é de se enraizar no espírito”.

Segundo a nossa interpretação este espírito não é nem o do paciente nem o do terapeuta, mas o do encontro.

 

 






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