sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Os Fu Extraordinários - introdução

                           Os Fu Extraordinários*
                                 Qi Heng Zhi Fu               奇恆之腑

“Cérebro, medula, ossos, mai (circulação vital), vesícula biliar e útero, esses Seis são produtos dos sopros da Terra; eles tesaurizam (cang ) o yin e reenviam à imagem (xiang ) da terra; é por isso que eles tesaurizam sem jamais deixarem escorrer para o lado de fora (xie ). O nome deles é Fu Extraordinários e perenes(qi heng zhi fu 奇恆之腑)”. (Suwen capítulo 11).

Elisabeth Rochat: Esse seminário se intitula fu extraordinários, qi heng zhi fu (奇恆之腑), esses são os fu que são qi heng. O caractere qi é o mesmo que o empregado para designar os meridianos extraordinários, qi mai 奇脈. Nós estudaremos inicialmente o sentido dos caracteres tomados isoladamente qi e heng, depois suas associações no Neijing, antes de apresentar cada um dos seis fu extraordinários.
A expressão “fu extraordinários” (qi heng zhi fu 奇恆之腑) aparece uma só vez no Nijing, o Clássico da Medicina Chinesa, no Suwen, no capítulo 11, e num contexto bem particular. Referências tão pontuais torna ainda mais importante a análise dos caracteres.

O caractere QI

Elisabeth Rochat: O primeiro caractere qi tem um sentido bem amplo. Segundo a etimologia clássica, nos livros chineses do 1° e 2° século, esse caractere pode ser dividido em duas partes, superior e inferior. A parte baixa é explicada como uma exalação, ke . A linha horizontal – representa um tipo de obstáculo e a segunda parte evoca alguma coisa que tenta que tenta se liberar, se separando desse obstáculo. O pequeno quadrado é a boca. O primeiro sentido desse caractere é de emitir uma aprovação, de exalar um sopro aprovador. Se você dobra esse caractere e acrescenta a imagem da boca aberta , você obtém o caractere que representa o canto, Ge , e cantar, é expressar satisfação e contentamento.

Claude Larre: Comumente nós expressamos o pensamento pelas palavras, mas às vezes as palavras são insuficientes, então começamos a cantar. Isso vem do Coração.

Elisabeth Rochat: No chinês clássico, esse caractere ke significa: consentir, querer, julgar possível, ser possível, aceitável, ser capaz.
Para obter qi , acrescenta-se no alto a representação de um homem com duas mãos e dois pés: .A primeira significação desse conjunto, segundo a etimologia é um homem emitindo uma exclamação de surpresa vendo alguma coisa um pouco estranha, inabitual, extraordinária, desigual, ou ímpar no sentido onde essa coisa não forma um par, não faz par com alguma outra coisa. Imediatamente pensamos nos zang e fu(臟腑) ordinários que estão todos em relação de casal (no sentido que cada zang está associado à um fu pela teoria dos cinco elementos). Mas os seis fu extraordinários são estão emparelhados à um elemento específico. É a mesma coisa para os meridianos. Os doze meridianos ordinários estão em casais yin yang, mas não os meridianos extraordinários - mesmo se eles estão em certos casos em relação um com outro.
É extraordinário o que suscita espanto, surpresa; um fato raro, inesperado, que sai do ordinário, que é maravilhoso ou estranho; o que não segue as regras habituais, que pode mesmo estar fora da lei ou ilegal; o que surge inesperadamente e pode enganar como um estratagema para a guerra; o que não possui seu igual, desemparelhado, único, ímpar e sem associações usuais.

O caractere qi (pronunciado ji) pode ter o sentido de ser em excesso: uma parte “à mais «que resiste à divisão, à separação. E por isso qi tem sempre o sentido de irregular: ele não segue nem as leis comuns da sociedade nem a corrente geral da vida. A vertente positiva expressa simplesmente a ideia de uma outra via de domínio do movimento da vida, que não segue as regras habituais.

O caractere qi pode também ser pronunciado ji.Com a pronuncia qi, tem-se o sentido sobretudo o de uma exclamação diante da visão de alguma coisa estranha e extraordinária. Com a pronuncia ji, o caractere qualifica mais alguma coisa fora do costume, irregular, ou alguma coisa que sobra, um excesso, a parte que resiste à divisão, como um número ímpar.

Claude Larre: O contrário de qi , extraordinário, é zheng , regular, normal, correto.

Elisabeth Rochat: Se você toma o caractere qi e acrescenta outro radical, você obtém um caractere diferente o qual o sentido esclarece o sentido de qi. Por exemplo, com o radical do cavalo você obtém o caractere qi que significa cavalgar.

Claude Larre: A conduta se refere aqui à cavalaria encarregada das operações com ataques surpresa. Ela pode ir a qualquer lugar e ela tem uma mobilidade extraordinária. É bem diferente da infantaria que possui uma aparência regular. É bem fácil ter esse elemento de surpresa com o cavalo.

Elisabeth Rochat: O livro “A arte da Guerra” de Sunzi, redigido nos séculos 3 -4 a.C., expõe as maneiras qi extraordinárias de ganhar uma batalha e os meios de apreciar se a situação demanda uma ação regular ou extraordinária. A tática qi sai do ordinário. Ela contém também o elemento da surpresa. A estratégia qi é a mais poderosa, mas também a mais difícil a ser conduzida.
Se, no lugar do radical do cavalo, você tivesse o da montanha (), você teria a ideia de um grande perigo, de um caminho íngreme através das montanhas, de algo precipitado e irregular, qi .Com o radical do jade, , você tem o sentido de uma pedra de valor, uma joia, qi .Com o radical do telhado, , é o caractere ji significando ‘permanecendo em algum lugar’, e ‘permanecendo com grande segurança’ pois você pode ter confiança. Se você tem confiança, você pode enviar uma mensagem, assim o sentido é também de enviar uma carta com a certeza que ela vai chegar ao bom destinatário.Com o radical do ser humano () esse novo caractere significa se apoiar sobre, conta com .Com o radical da madeira () você obtém uma poltrona ou assento confortável yi .
Assim podemos ver dois aspectos desse caractere: alguma coisa de irregular que pode se revelar ou perigoso e precipitado, ou estável, fiável e confortável.

O Caractere Heng

Elisabeth Rochat: A etimologia do caractere heng mostra, à esquerda, o radical do Coração =.A parte direita é constituída de duas linhas no lado e em baixo, representando uma passagem, a ideia de travessia entre dois lados, talvez Terra e Céu, ou entre duas margens como um barco fazendo a ligação. O caractere no seu conjunto tem o sentido de um perpétuo movimento entre duas coisas, entre ying e yang poderíamos dizer, de uma sucessão sem interrupção, que se faz completamente, integralmente até o fim sem solução de continuidade. Daí o sentido de continuidade e perseverança. Nessa perspectiva, o Coração preenche suas funções naturalmente, pois o Coração deve controlar ambos os lados da vitalidade. Ele deve ser capaz de tomar uma decisão e de manter a constância e a continuidade da vida individual.
Na mesma via, heng é também um dos sessenta e quatro hexagramas do Livro das Mutações, o Yijing. É o trigésimo segundo hexagrama, o que o coloca em lugar central pois 32 é a metade de 64.O sentido desse hexagrama é que, à força de perseverança e de continuidade, as trocas entre as partes altas e baixas do corpo do homem, da sociedade e da hierarquia são bem definidas, assegurando assim a harmonia e a continuidade da vida.

Claude Larre: O hexagrama 32 é composto de duas linhas yin (descontinuas) em cima, mais três traços yang (contínuos), depois uma linha yin (descontínua) embaixo. Isso dá a sensação de uma construção tendendo para a estabilidade e equilíbrio. Segundo o dicionário Ricci, é o momento onde a relação entre o forte e o fraco evolui de maneira fecunda para um e outro, permitindo assim a continuidade do desenvolvimento da vida entre Céu e Terra. Nem um nem outro não podem prevalecer. A ideia principal do Livro das Mutações, é de encontrar um meio de governar o Estado ou o Império e si mesmo. A estrutura do hexagrama que garante o equilíbrio no seio mesmo do movimento permite refletir à questão de saber como encontrar o equilíbrio da vida. O aspecto heng será tirado do aspecto qi, fazendo qi heng.
O estabelecimento de qualquer coisa deve sempre emanar do extraordinário, enquanto que o movimento contínuo em curso será tomado tranquilamente pelo ordinário. O extraordinário e o permanente se completam e formam uma unidade que é a base do processo de vida.

Elisabeth Rochat: existem duas formas de traduzir essa expressão qi heng 奇恆: ou como o permanente, a regra, ou como o que é extraordinário. Em francês, devemos escolher uma ou outra interpretação, mas elas coexistem na expressão chinesa, mesmo se sempre um sentido se impõe segundo o contexto.
Nos livros antigos, a expressão qi heng designa uma antiga técnica de diagnóstico para determinar se a evolução da doença se faz em função ou não dos ciclos das estações, quer dizer se sua evolução segue as regras normais, habituais ou ao contrario se faz estranha e inesperadamente, fora das transmissões e ciclos habituais.
Os fu extraordinários são os fu que são diferentes dos fu regulares; o caractere heng não é somente regra da vida, é também o que assegura a continuidade do desenvolvimento da vida entre Céu e Terra. Nós veremos como os fu extraordinários estão entre zang e fu. Eles são chamados fu mas eles agem como os zang.

Claude Larre: Nós podemos nos referir ao que disse Elisabeth no início sobre a expressão qi jing ba mai 奇經八脈,os oito meridianos extraordinários. Eles formam um sistema que é a base e o início do embrião e das funções da vida. Mas quando o embrião se desenvolve e que distinguimos os membros, os meridianos são ligados aos membros e são definidos como sendo do pé ou da mão. Então eles não são mais somente os oito, mas os doze:
os doze meridianos regulares entram em ação, ao lado dos oito meridianos extraordinários. Duas vezes quatro é o sistema extraordinário que preside as origens. Doze, ou seja, três vezes quatro, designa um outro aspecto das atividades vitais que são religadas aos membros (Dois é a distinção yin yang, mas Três é o número dos sopros manifestados).
Em um texto chinês, quando não somos capazes de dar uma explicação, nós somos livres de construir uma interpretação sistemática onde os números exercem seus papéis e eles se ligam aos diferentes aspectos da vida. Então nós podemos começar a perceber o vasto quadro do que é a vida.

SUWEN Capítulo 15

Elisabeth Rochat: Neste capítulo e em alguns outros como Suwen 11,19,77 ou 80, qi heng é uma expressão que nos leva aos livros de medicina. Infelizmente eles estavam perdidos no momento mesmo da compilação do Suwen. Nós podemos ter informações complementares através dos textos desses capítulos que citam os tratados qi heng, e de seus comentadores.

 “Huang Di pergunta: Eu conheço pela tradição a avaliação e a medida (kui duo 揆度), o   extraordinário e o permanente (qi heng奇恆). Como eles indicam as diferentes situações e como as utilizar?
Qi Bo responde: a avaliação e a medida (kui duo 揆度) permitem determinar a profundidade da doença. O extraordinário e o permanente estão relacionadas com as doenças extraordinárias. Permita-me falar a vocês dos números supremos (as grandes leis, zhi shu 至數), da Via (do método, dao ), dos cinco aspectos coloridos (wu se 五色), das mudanças dos pulsos (mai ), do extraordinário e do permanente (qi heng), da avaliação e da medida (kui duo 揆度).
A Via (dao) está na unidade e nos espíritos (shen), transmitem um movimento de rotação sem volta. Se eles voltassem atrás eles não poderiam por mais tempo assegurar a rotação e isso seria a perda do mecanismo (ji ). Os números supremos (as grandes leis) se aproximam de mais perto do que é sutil. Isso foi gravado nas tábuas de jade, com o título: o mecanismo inscrito nas tábuas de jade. (Suwen capítulo 15) ”

Elisabeth Rochat:

Os Diagnósticos

A avaliação e medida kui duo 揆度, é o nome dado às técnicas que permitem avaliar o estado do paciente e a profundidade da doença. Utilizar kui duo para fazer um diagnóstico é uma via, um método, e tratar com o extraordinário e o permanente é uma outra via, um outro método. Para fazer um diagnóstico, podemos também olhar a tez, as cinco cores (wu se 五色), apreciar as variações do pulso, cada um fazendo sua análise segundo seu conhecimento e seus meios. O resultado depende da experiência e da excelência do terapeuta. O essencial é realizar a unidade de todos os sinais diagnósticos e de fundar essa unidade sobre a qualidade dos espíritos, os shen .

Os Espíritos

Os espíritos são os asseguradores e os inspiradores da ordem natural de cada um. Quando todos os ciclos e alternâncias transcorrem corretamente, quando tudo vai na boa direção e segundo o ritmo apropriado, é uma expressão dos espíritos. Os espíritos (shen) são o centro da vida, e por isso mesmo, na origem de cada movimento da vida. Os espíritos de cada pessoa impulsionam esse movimento vital. Se essa impulsão é seguida sem ser contrariada, então o homem torna-se cada vez mais “espiritual”, assemelhando-se aos espíritos.

Os espíritos (shen) seguem as estações, e por isso cada um dos cinco elementos possui um período de dominação. O equilíbrio é encontrado na sucessão natural deles. Após o inverno vem a primavera, após a primavera é o verão, etc. Na natureza, jamais veremos o inverno vindo após a primavera, ou a primavera depois do verão. Às vezes o tempo está completamente fora da estação, mas é somente por curto período de tempo e não se trata de uma lei da natureza. Em cada indivíduo, esse movimento deve ser mantido; cada um deve seguir sua própria natureza e seu ambiente, observando as estações em tempos e horas, e nosso tempo interno, nossa idade. Assim esse movimento se expressa sempre através um movimento de rotação que não conhece volta para trás, o que seria perverso. Seria como pretender que tenhamos 20 anos quando se tem 50, ou viver à noite
em vez do dia.

A circulação do composto sangue e sopros no interior do organismo depende dos movimentos corretos de cada zang e fu, e da rotação natural dos cinco elementos. Devemos estar atentos à esta circulação, assim como às essências (jing ) e à renovação delas segundo o ritmo da nutrição. Devemos também estar atentos à expressão dos espíritos que vem dos cinco zang e especialmente do Coração, e que se manifesta na qualidade das essências e na circulação do sangue e sopros.

De acordo com Suwen 13, quando um homem está com a plena possessão de seus espíritos, o que significa que ele lhes permite governá-lo se regulando sob a ordem da vida. Então se manifesta um grande esplendor da vida. Sua tez é bela, a circulação do sangue e sopros é perfeita, e o homem não fica doente.

O Suwen 14 adverte: quando os espíritos se vão, a doença se torna incurável. Pois mesmo um bom técnico não pode fazer nada para um indivíduo que perdeu o centro e a articulação de seus movimentos vitais.

Suwen 26 diz que “sangue e sopros (xue qi 血氣) são os espíritos no homem”. É por isso que nós devemos lhes prestar todos nossos cuidados.

Em Suwen 1, uma das condições necessárias para tornar-se um sábio é ter uma boa relação entre o corpo e os espíritos. Os espíritos são o pivô mais secreto e o mais profundo da vitalidade e, graças à manutenção de sangue e sopros, eles têm a ocasião de governar a vida. Isto nos permite realizar nossa vida segundo o número de anos que nós temos para viver, e de seguir “os números supremos”, zhi shu 至數, quer dizer, as leis que reguem a ordem natural, como por exemplo em medicina os ciclos da defesa (wei ), da nutrição (ying ), os do ano e das estações.

Assim, no nível mais sutil e íntimo, os espíritos governam a vida e comunicam o bom ritmo e a justa circulação. Esse bom ritmo e essa perfeita circulação não são nada mais que a transmissão natural de um zang a um outro, de um zang à um fu e a distribuição de sangue e sopros no organismo. É também todas as trocas entre o interior e o exterior. Se uma dessas transmissões está alterada, então a doença pode aparecer.

As Perturbações dos Espíritos

Nós temos várias maneiras de determinar as perturbações. Por exemplo, pela observação da tez ou pela palpação dos pulsos. Tez e pulsos, assim como as técnicas mais misteriosas de diagnostico, chamadas kui duo e qi heng, fazem conhecer onde e como os espíritos tornam-se incapazes de comunicar o bom movimento da vida.

O essencial é de retornar à unidade. Quem não é capaz de ir até os espíritos, como diz o Lingshu 8, será incapaz de permitir uma cura real. A dor poderá ser tratada, mas a boa circulação com seu movimento de rotação não será restaurada. A conservação desse sutil mecanismo é tão importante que o imperador pede à Qi Bo de inscrevê-lo sobre uma tábua de jade.

Claude Larre: Se alguma coisa é gravada em letras de ouro sobre uma pedra de jade, é como a cor do Céu, ouro, inscrita sobre a terra, jade. É o ensinamento mais valido que você possa receber. Assim é sempre importante ver não somente o que é dito, mas também seu contexto. Se certas coisas são preservadas numa biblioteca, a orquídea- que é o nome da biblioteca do imperador- e são gravadas no jade, isso significa que o ensinamento deles é muito precioso.

Elisabeth Rochat: O Grande Comentário do Livro das mutações, o IChing, anuncia:
”Quem conhece a Via das mudanças e transformações (bian hua 變化), conhece os espíritos. ”
 Os espíritos shen não são perceptíveis que através da manifestação de todos os mecanismos dos quais o Coração é o articulador e o assegurador. Assim, como explica um comentário, podemos perceber através dos pulsos o mecanismo dos espíritos no indivíduo. Podemos lhes perceber também observando a tez, por exemplo.
O essencial é de atingir shen através dessas manifestações e qi heng é uma via, um método, para fazê-loNão podemos exatamente dizer o que seria essa técnica chamada qi heng, mas o capítulo 46 do Suwen fornece esclarecimentos:

SUWEN Capítulo 46

  ““O canhão do superior”, shang jing 上經, ensina as relações do qi com o Céu. O canhão do
      inferior” xia jing 下經,ensina as mudanças e transformações das doenças. O “cofre de ouro”,
      jin gui 金匱,é o que decide entre  a vida e a morte. A avaliação e a medida (kui duo 揆度) são
     a precisão nas medidas. O extraordinário e o permanente (qi heng 奇恆) ensina o proposito
     de doenças extraordinárias .Quando falamos de extraordinário (qi ),  a morte não está
     em relação com as quatro estações. Quando falamos de permanente (heng ) é que a
     morte está relacionada com as quatro estações. Quando falamos de avaliação (kui ) é
     para determinar as coisas justas tocando e procurando as estruturas íntimas das
     circulações vitais e dos pulsos (mai ).A medida (duo ) é para atingir o lugar exato da
     doença nas quatro estações.”

Tratado Superior e Tratado Inferior

Nós temos uma apresentação do “tratado do superior “, shang jing 上經 e do “tratado do inferior”, xia jing 下經. Jing designa aqui um livro clássico, um tratado. Assim o shang jing e o xia jing são clássicos.Shang , é acima, a mais alta posição, e xia , é a posição mais baixa.
O que existe nas alturas na hierarquia humana, é o Imperador; no universo, é o Céu. Na posição mais baixa, é a Terra. É a razão pela qual o shang jing é um clássico que trata as relações do homem com o Céu para a manutenção de seus espíritos e o xia jing trata das relações com a Terra. A relação com o Céu mantém uma boa circulação dos sopros como podemos ver no Suwen, nos capítulos 1, e 3 a 9.Esses capítulos descrevem o bom ritmo da vida através o yin yang e os cinco elementos que concordam à impulsão dada pelo Céu. Os tratados que descrevem nossas relações com a Terra falam de manifestações mórbidas, no Suwen, capítulos 28 a 49.A citação do capítulo 46 aqui acima fala das “mudanças e transformações das doenças”.

O Cofre de Ouro

Um “cofre de ouro” jin gui 金匱, é lugar que contém alguma coisa preciosa, como uma coleção de escritos fundamentais. Essa expressão se encontra no título de várias obras tais quais o famoso Jingui Yaolüe de Zang Zhongjing ou em capítulos, tal qual o capítulo 4 do Suwen. O que é mais importante, o mais precioso, é de ser capaz de distinguir entre o que leva à vida e o que leva à morte. É a observação diagnóstica cuidadosa, que permite ver se a doença progride em direção da morte ou da vida.

O Extraordinário e o Permanente.

O extraordinário e o permanente qi heng 奇恆 “ensina à propósito das doenças extraordinárias. ”

   “Quando falamos de extraordinário (qi ), a morte não está relacionada com as quatro 
    estações. Quando falamos de permanente (heng ) a morte está em relação com as
    quatro estações”.(Suwen 46) 

Sabemos que as doenças ordinárias se desenvolvem em acordo com as quatro estações, em reação às influencias vindas do exterior, do frio, ou do calor, e assim por diante. O ponto importante é que a evolução dessas doenças segue o ritmo das estações, o sentido normal de transmissão indo de um elemento (ou agente)
 a um outro, de um zang ao outro. A evolução da doença é quase matemática e previsível. É uma doença heng ,permanente pois sua evolução segue  o sistema permanente do movimento das circulações vitais através das estações, dos elementos, dos zang. As doenças extraordinárias são as outras doenças, o resto, o excedente, e são menos dependentes desse ritmo: suas causas não estão em correspondência com as quatro estações. Por exemplo, elas podem vir de nossas emoções ou de nossas tensões, que perturbam o movimento da vida. Nesse caso, os espíritos são incapazes de assegurar a continuidade da vida pois as emoções constituem um movimento que domina o das estações.
Esse exemplo mostra que o extraordinário é capaz de causar e de levar a um tipo de doença que varre os ritmos habituais da vida normalmente assegurados pelos doze meridianos, os doze meses do ano, etc. Se o extraordinário é capaz de levar a esses distúrbios, ele é também capaz de manter a vida além dos ritmos normais.

Claude Larre: É como um tipo de rede de proteção ou de organização superior.

Elisabeth Rochat: Assim, devemos avaliar com o diagnóstico, se a doença depende do extraordinário ou do permanente, do regular. A doença se inscreve no ciclo normal da vida? É uma doença mortal? Ela provém de um aspecto mais profundo da vida não emergindo dos ciclos normais?

Claude Larre: Parece-me que o problema da morte não é a única consideração. Se é a sua hora, porque não morrer? Mas se não é o caso, então você não deve morrer. Essa informação depende de um bom diagnóstico.
Se a causa da doença está ao seu alcance, você pode encontrá-la porque é alguma coisa que acontece com você. Mas a causa da doença pode também estar além do que pode ver um diagnóstico ordinário.

Elisabeth Rochat: Os cinco zang e os espíritos ligados aos cinco zang seguem o ciclo da vida do adulto? Ou eles estão perturbados pela doença? Nesse caso, estamos numa situação extraordinária, qi , com uma doença extraordinária. É o lado ruim do extraordinário, qi do qual o lado bom é a manutenção da vida por trás de todas as circulações regulares e das correspondências com o mundo exterior. Podemos ver algo de análogo com os meridianos extraordinários que não possuem correspondências com as estações, ao contrário dos meridianos regulares. Aqui o extraordinário, qi , evoca o que não faz parte da ordem estabelecida.

LINGSHU capítulo 76

Elisabeth Rochat: A circulação dos sopros defensivos (wei qi 衛氣) é perfeitamente regulada com as diferenças entre o dia e a noite, seguindo o movimento do sol. Essa circulação é dividida em etapas de 15 minutos porque era a unidade do tempo do relógio à água ,15 sendo 3 X 5.Temos também uma descrição desta circulação durante o dia de 24 horas, ou durante o ano.
 Mas um dia não faz exatamente 12 vezes 120 minutos como o ano não faz exatamente 365 dias. O nome dado ao tempo restante nesses textos descrevendo a circulação dos sopros defensivos é ji .Esse resto nos permite viver com um ritmo que é o melhor para nós, pois esse pequeno “excedente” chamada ji nos permite ir à cama um pouco mais cedo ou mais tarde de maneira a ficar exatamente no nosso próprio ritmo. Ele permite uma certa flexibilidade, e é assim que segue a vida. Existem normas e regras na China e na medicina chinesa, mas existe também uma certa flexibilidade. Esse pequeno resto ou ji permite a regularidade dos ritmos e dos ciclos na flexibilidade.

SUWEN capítulo 11

Elisabeth Rochat: É nesse capítulo que aparece a única ocorrência da expressão
“fu extraordinários”(qi heng zhi fu ).

“Huang Di perguntava: no mundo do mestre em receitas (fang shi 方士), às vezes cérebro e
   medula são zang e às vezes são fu .Eu ousaria lhe interrogar sobre essa sucessão de
   contradições? Todo mundo pretende ter razão. Eu não sei como é. Você poderia me
   explicar?
  Qi Bo respondeu: cérebro, medula, ossos, mai, vesícula biliar e útero, esses seis são
   produtos de sopros, qi, da Terra ( di qi 地氣).Eles tesourizam (guardam)o yin e reenviam à
   imagem da Terra. O nome deles: fu extraordinários (qi heng zhi fu ).

   O Estômago, o Intestino Grosso, o Intestino Delgado, o Triplo Reaquecedor e a Bexiga,
   esses cinco são produtos dos sopros do Céu (tian qi 天氣),seus sopros nos enviam  à
   imagem do Céu .É por isso que eles fazem fluir para o exterior e não tesourizam(não guardam).

   Eles recebem os sopros turvos (zhuo qi 濁氣) dos cinco zang. O nome deles é fu para
   as transmissões e transformações ( chuan hua zhi fu 傳化之腑 ).Eles não podem por muito
   tempo guardar sem transmitir ,para finalmente fazerem vazar para o exterior. A porta dos Po
   (po men 魄門,o ânus)é também um servidor distanciado dos cinco zang pois líquidos e
   cereais não devem permanecer tesaurizados por muito tempo.

   Assim portanto, os cinco zang são aqueles que tesourizam as essências e os sopros (jing
   qi 精氣 ),sem os deixar vazar para o exterior. É por isso que eles são ditos serem plenos de
   plenitude man 滿 e a plenitude shi não lhes convém.
 
   Enquanto que os seis fu que transmitem e transformam sem jamais guardar são
   eles plenos da plenitude shi e a plenitude man 滿 não lhes convém.

   Assim, quando líquidos e cereais penetram pela boca, o Estômago se enche enquanto
   os intestinos estão vazios .E quando a comida desce ,os intestinos se enchem (shi )
   enquanto que o estômago se esvazia  (xu ).Falamos com relação à eles de
   plenitude shi e não de plenitude man.”

As duas Séries de Fu

Esse texto apresenta duas séries de fu: os fu regulares que são chamados chuan hua zhi fu , que são os cinco fu encarregados das transmissões e transformações, e um outro grupo, os qi heng zhi fu que são os fu extraordinários e permanentes, no número de seis. O primeiro grupo reflete a imagem do Céu e o segundo,a da Terra.

A Terra controla todos os movimentos que guardam e tesourizam, é o aspecto do movimento yin pelo qual a Terra ela mesma é formada, e a gênese do universo. É o movimento de condensação e de aglomeração. Em seguida expressa o yang que está no sei yin pelo seu movimento de subida, semelhante aos dos vapores de água que sobem para o Céu formando as nuvens. É uma imagem das influências que provêm da Terra e que se elevam para o Céu.

Do seu lado, o Céu dirige todas as transformações e seus desdobramentos, as circulações e distribuição de influxo. É o movimento mesmo pelo qual o Céu é formado na gênese do universo. É o movimento yang de expansão e subida. Em seguida o Céu expressa o yin que está no seu yang por um movimento de descida, por exemplo fazendo chover. É assim que as trocas yin yang do Céu Terra podem realizar-se. No corpo humano essas trocas do Céu e da Terra se veem por exemplo nas relações entre o Reaquecedor Superior o Reaquecedor Inferior, ou entre o Pulmão e os Rins. Pode parecer bizarro que os fu extraordinários, que guardam as essências vitais, sejam ligados à Terra enquanto que os fu ordinários, que digerem os alimentos vindos da Terra, sejam ligados ao Céu. A guarda das essências puras e claras poderia qualificar os fu extraordinários em um grau superior na hierarquia que o dos fu normais, que se ocupam do turvo e do impuro. Ouro é o Céu que é hierarquicamente superior à Terra.

Claude Larre: Não se trata somente de nossa questão, mas também a do Imperador à Qi Bo. A ambiguidade está no texto. O Huainanzi, capítulo 3, descreve a aparição do Céu e da Terra. É o Céu que se dissocia primeiramente do caos. O que chamamos Céu não poderia ser chamado Céu antes de existir por esta separação do caos. O Céu é o movimento de expansão: tudo o que se difunde e se emprega a partir do caos para subir e se implantar é chamado Céu. Assim, quando tem a separação, o que não pode se implantar e subir cai num tipo de concentração e de condensação, e é isso que faz a Terra. Nesse nível, falamos apenas de um movimento de subida e de implantação e de um movimento de descida e de condensação. Esses dois movimentos são naturais ao Céu e à Terra: eles definem o que eles são. No seio do caos, esses dois movimentos fazem a distinção, a separação.

Mas por outro lado, nós sabemos que Céu e Terra trabalham juntos e que deve ter um movimento do Céu para a Terra e da Terra para o Céu, que é um movimento secundário se assim quisermos e do qual já falamos. Para que alguma coisa apareça, é necessário que alguma coisa venha da Terra sob a influência do Céu, e é assim que ele pode surgir, subir. Mas essa aparição é secundária comparada à primeira aparição que é natural ao Céu. Esse aparecer para o alto é interrompido quando os influxos vindos do Céu descem para a Terra. A questão é a da distinção entre zang e fu, entre o valor simbólico dos números cinco e seis e entre uma plenitude shi e uma plenitude man.

Elisabeth Rochat: Nesse texto do Huainanzi, os seis fu estão em relação com a Terra. No Suwen 11, a Terra e o movimento da Terra são o modelo, a imagem para os seis fu extraordinários.

Claude Larre: “Imagem” é a palavra que temos para traduzir xiang . E essa imagem não é uma imagem visível. Xiang é de fato uma analogia, um símbolo: a relação de alguma coisa ao Céu ou à Terra.

Elisabeth Rochat: Os fu extraordinários agem como a Terra, tesourizando, guardando e fechando; mas ao mesmo tempo, eles permitem ao que é puro e essencial elevar-se. Se retornamos à imagem dos vapores, das nuvens e da chuva, o que sobe para o Céu é mais puro que a lama que fica na Terra. Por outro lado, os cinco fu das transmissões e transformações possuem um movimento semelhante ao do Céu, que faz descer o yin, as substancias e os líquidos para baixo.

No capítulo 11 do Suwen, os seis fu extraordinários que refletem a imagem da Terra são yin e os cinco fu para as transmissões e transformações que refletem a imagem do Céu são yang. O fato de considerar os fu extraordinários como do yin explica-se se nos colocamos do ponto de vista do movimento secundário da interação entre o Céu e a Terra.
O objetivo deste texto é de mostrar, através as trocas por cinco e por seis, a complexidade e a realidade das trocas entre Céu e Terra.

O Cinco e o Seis

Se temos uma série de cinco termos, o fato mesmo que eles sejam cinco é carregado de sentido e indica o nível no qual é necessário compreender as noções de que falamos. Próximo à era cristã, toda uma série por cinco deve ser tomada sob o modelo dos cinco elementos: a série recapitula a totalidade e permite a classificação de tudo o que comporta segundo cinco grandes tópicos.
Por exemplo, cinco cores servem para classificar as cores, ou cinco sabores, todos os sabores; cada cor ou cada sabor está ligado à uma das cinco cores ou sabores tipos, pois ela divide com o elemento associado a esta cor, ou sabor, um mesmo sopro; sopro que se encontra em todas as noções e realidades das inumeráveis outras séries que se encontram ligados ao mesmo elemento.

O número seis simboliza a rede de relações encarregada da manutenção da vida. Seis serve para a implementação da organização iniciada a cinco; é o número por excelência do que administra por repartição:
Representação das realidades constituídas do conjunto dos sopros yin yang pelos hexagramas compostos cada um de seis linhas contínuas ou quebradas; divisão dos sopros yin yang em três pares dos quais as trocas formam as seis junções (ou reuniões, liu he 六合), quer dizer, o universo conhecido, no cruzamento do dinamismo celeste e da submissão terrestre. Analogicamente, a constituição do espaço vital de um ser pelas relações entre meridianos -os Seis yin e os Seis meridianos yang -assegurados por trajetos que se distinguem desses meridianos e chamados jing bie 經別.
Assim os cinco zang representam a totalidade das atividades vitais, o conjunto do todos os sopros que fazem e mantém a vida, à imagem dos Cinco elementos. Enquanto que os Seis fu representam o sistema que fornece à manutenção da vida, pela alimentação, fonte das essências, para os fu ordinários, e para as essências propriamente ditas, fonte de vida, para os fu extraordinários.
Esses seis fu extraordinários seriam o que constitui e constrói a rede de relações das essências durante a formação e a vida do corpo. Existe um tipo de estabilização através desses seis para concentrar e conservar o que é puro. O que é impuro, turvo, é encaminhado para o exterior via o ânus. Se alguma coisa sobra no interior do corpo, deve ser sempre puro e pleno de vitalidade, e útil para a renovação e manutenção da vida, o que chamamos essências. Somente as essências podem ser tesourizadas, guardadas no corpo pelos Cinco zang assim como pelos Seis fu extraordinários.

Questão: Vocês podem dizer alguma coisa a propósito das seis junções entre o Céu e a Terra?
Claude Larre: Essa questão do Seis é habilmente expressa nos textos pelas Seis junções (liu he ). Encontra-se não somente no Neijing mas também no Zhuangzi, por exemplo.
O que está no interior das Seis junções é alguma coisa que não podemos realmente compreender, mas à qual podemos participar. O que está fora do modelo das seis reuniões ultrapassa a compreensão do espírito humano ou da consciência. A grandeza do espírito dos Chineses é tal que eles fizeram uma clara distinção entre o que podemos e o que não podemos esperar. Eles supõem que alguma coisa existe além de nosso alcance e é além das seis reuniões. Ao nível de nossa vida humana, nós somos num nível de organização onde é normal falar de cinco para a interpenetração e de seis para as relações.

Elisabeth Rochat: Outra maneira de ver a diferença entre zang e fu e entre os dois tipos de fu é dada no texto pela oposição de dois caracteres para plenitude, man 滿 e shi .
Eles designam cada um tipo diferente de plenitude.
Se olharmos o caractere shi , vemos um telhado no alto do caractere. Um teto indica residência, um abrigo onde alguma coisa pode ser trazida. Embaixo, está desenhada uma ligadura de búzios, conchas, símbolos de riqueza: búzios enfiados num cordão .Coloca-se sua fortuna ao abrigo sob um teto. É a prosperidade para a casa pois temos riquezas e, portanto, a família e seus dependentes podem frutificar. Um fruto tem uma riqueza que vem da árvore e se torna shi , um fruto bem maduro e verdadeiramente pleno, de uma plenitude substancial que podemos tocar, apalpar. A plenitude shi , nesse texto, implica que alguma coisa de substancial toma lugar num espaço livre, vazio: por exemplo, os alimentos no Estômago. Os alimentos recebidos no Estômago serão transformados, digeridos, assimilados, e, para a parte não assimilada, ocorre uma transmissão do Estômago para os Intestinos. A plenitude shi indica por exemplo que o Estômago, que se apresenta como um saco vazio está pleno de alimentos ou quimo, e depois os Intestinos na vez deles, serão plenos de quimo. Estômago e Intestinos se enchem e se esvaziam em alternância.
O caractere man 滿, composto de água e do perfeito equilíbrio dos pratos de uma balança, dá a ideia de uma total impregnação. Nada é visível, não tem bloco substancial que seria visível num espaço livre para arbitrá-lo. É mais a imagem da água numa esponja: a água está aí, mas vemos somente uma esponja que não está seca, que está plena.

Os cinco fu ordinários para as transmissões e transformações (chuan hua zhi fu 傳化之腑), então plenos de plenitude shi, e os cinco zang são plenos com a plenitude man. Isso significa que os fu extraordinários são capazes de guardar e de tesourizar as essências assim como de liberar os sopros que provêm das transformações das essências. É evidente que eles não recebem as essências como alimentos substanciais, porque as essências são sutis e imperceptíveis. Elas podem embeber qualquer coisa de maneira a lhe tornar plena da plenitude man. O problema é que os fu extraordinários se apresentam mais como um espaço vazio que se enche de qualquer coisa, e não verdadeiramente como um zang, que é uma massa completamente embebida de essências. Tomemos o exemplo da Vesícula Biliar. Ela parece um pequeno saco que é cheio de essências especiais formando a bile. A bile é o aspecto visível das essências tesourizadas na Vesícula Biliar. Isso funciona muito bem para a Vesícula Biliar ou o Útero, até para os ossos e as circulações vitais. É mais difícil de compreender para a medula e o cérebro. Mas como não é possível ter que Cinco zang representando a totalidade da vida e sua organização central, os outros órgãos são de uma certa forma seus subalternos; o termo de “fu” lhes convém estão melhor.

Os fu extraordinários são exatamente como os zang pois eles tesourizam essências, mas eles não são como os zang no fato que eles possuem um espaço vazio que lhes torna semelhantes aos  fu.
Uma das funções dos fu extraordinários é de evacuar fora do corpo. Esses fu extraordinários possuem uma posição intermediária entre zang e fu; eles estão também entre Céu e Terra ou entre alto e baixo. Eles guardam as essências, mas não permitem a elas subirem, quer dizer, se soltarem e se movimentarem. Nós veremos isto no Lingshu capítulo 10 onde eles aparecem como a primeira etapa do desenvolvimento do corpo.

Os fu extraordinários aparecem somente no capítulo 11 do Suwen e estão ligados ao mundo dos mestres nas receitas (fang shi ). Esses são os mestres taoïstas que praticam técnicas particulares tais como a respiração embrionária. A respiração embrionária aparece várias vezes nos comentários desse capítulo, para explicar os fu extraordinários. Eles explicam que a divisão entre zang e fu é feita para estudar a emissão dos sopros os mais puros, a concentração das essências as melhores, para construir o embrião espiritual no baixo ventre no nível do campo do cinábrio inferior. De fato, no contexto do Suwen 11, se trata muito provavelmente de um desenvolvimento da nomenclatura, ainda mal definida na época dessa apresentação da teoria médica.
Os comentários dizem também que as funções dos fu extraordinários estão mais próximas da origem que os doze meridianos ordinários ou as vísceras por exemplo. É a mesma coisa com os meridianos extraordinários; os adeptos da alquimia interna e da respiração embrionária recomendam a prática para os que, com boa saúde, tentam procurar atingir sua própria natureza original.
Segundo um comentário, a comunicação com a Fêmea Original pode se estabelecer graças à atividade dos seis fu extraordinários; é por isso que os mestres poderiam utilizar os seis fu extraordinários com esse objetivo. Os seis fu extraordinários ocupam um lugar particular com a origem, e por essa razão, eles podem assegurar a continuidade do desenvolvimento da vida, através do movimento das essências.
Esses fu extraordinários estão permanentemente ativos no corpo humano, exatamente como os meridianos extraordinários. Eles possuem funções especiais para estabilizar e regularizar a vitalidade quando ela é deficiente ou muito fraca ou quando ela é atacada pelas influências sazonais externas, por exemplo. Eles permitem também aos que estão em boa saúde fazerem o retorno à origem com exercícios específicos, sendo fiel ao modelo original das essências.

Claude Larre: Esses fu são extraordinários, e eles asseguram a continuidade da vida. Quando falamos de medicina, estamos interessados pelas doenças, mas aqui, falamos de pessoas em perfeita saúde que querem proteger essa saúde e se manterem em um nível superior.
 Vocês não viverão jamais bem se não viverem a partir de sua origem e se não retornam à sua origem. É sempre esse caminho cíclico entre o presente e a origem.

Elisabeth Rochat:  A volta à origem é um retorno ao domínio do corpo, e isso explica os comentários do Suwen 15 ou 46 segundo os quais, se vocês são incapazes de agir sobre os espíritos, vocês são incapazes de tratar, pois seu paciente não pode retornar à sua origem, que é também sua natureza própria e seu ritmo de vida.

LINGSHU Capítulo 10

O início desse capítulo descreve a constituição do corpo humano:

  “Quando o homem começa sua vida, primeiramente, as essências (jing ) se compõem
    perfeitamente ( cheng ).Quando as essências são perfeitamente compostas, o cérebro
    e a medula (nao sui 腦髓) aparecem(sheng ).Os ossos (gu ) fazem a estrutura ,a circulações
    vitais (mai ) nutrem(ying ),o muscular ( jin)faz a solidez. As carnes (rou ) fazem os
    fechamentos ( qiang ),as camadas da pele são firmes e os pêlos e cabelos crescem. Os
    cereais entram no Estômago, as vias da animação (mai dao 脈道)estabelecem suas livres
    circulações (tong ), e sangue e sopros (xue qi 血氣)podem circular (xing ).”

As essências primeiras, originais, são os quatro primeiros fu extraordinários: cérebro, medula, osso, e circulações vitais mai; eles são então assim os primeiros componentes do ser humano.
As essências chegam primeiro porque elas são nada mais do que a composição da compenetração das essências do pai e da mãe que dão o modelo para uma nova vida, permitindo aos sopros se particularizarem e se ativarem. São as essências ditas do Céu anterior.
Não existem seres vivos sem essências. O Lingshu capítulo 8 liga as essências ao aparecimento da vida:
“Que os vivos aconteçam indica que as essências existam (jing ) ”.

O capítulo 30 diz que «Quando Dois espíritos se abraçam, a conjunção deles dá forma a um corpo.O que vem primeiramente na vida de um ser (numa vida pessoal expressa num corpo, shen sheng 身生),é chamado Essências (jing ).”

O encontro das essências, nesse nível, é considerado como celeste ou terrestre, yin ou yang? As essências são yang e ligadas ao Céu quando elas são o modelo daquilo que formará a estrutura do corpo. Mas elas são geralmente consideradas como yin, porque elas constituem a substância viva que constrói e mantém toda forma, incluindo o corpo. Elas não são a impulsão ou atividade que constituem os sopros. Elas geralmente formam um casal yin yang com os sopros.

Claude Larre: Ser ativo, é ser yang; depender de alguma coisa, é ser yin. Aqui vocês dependem das essências, e vocês dependem delas para a vida.

Elisabeth Rochat: Vimos que os fu extraordinários entesouram as essências; nesse texto descrevendo a fabricação e a constituição do corpo humano, temos as essências antes de qualquer coisa. Os Rins são os zang que entesouram as essências, não somente as deles, mas também as essências que provêm de outros zang e as essências do Céu anterior, para a continuidade e o desenvolvimento da vida. O primeiro modelo da construção do corpo humano permanece constante. Nós não podemos mudar nosso rosto, nem nossa constituição nem nossa natureza. Às essências asseguram a continuidade e a permanência do andamento e do desenvolvimento da vida. É um outro ponto que elas possuem em comum com os fu extraordinários.

  “Quando um ser humano começa sua vida, primeiramente, as essências compõem-se perfeitamente. ” (Lingshu 10).

É a compenetração de duas essências a perfeita realização de um ponto de partida para a nova vida (por exemplo, as essências do pai e da mãe). Quando as essências são compostas assim, então o cérebro e a medula são produzidas; a relação entre cérebro e medula é muito forte pois o cérebro é o mar das medulas e que o cérebro é também uma concentração de essências. A relação do cérebro com os Rins é igualmente muito forte desde as essências vindas dos Rins e, que, pela medula espinhal, revitalizaram o cérebro e a medula do cérebro. A conexão entre os Rins de um lado, e os ossos e a medula de outro lado, é igualmente muito forte pois os Rins vitalizam e produzem ossos e medulas, lhes dando ao mesmo tempo força e flexibilidade.

Questão: Os Rins não são mencionados nesse texto; as medulas precedem os Rins?

Elisabeth Rochat: Os textos não permitem responder à essa questão, pois nenhum entre eles não fornece o processo complexo do desenvolvimento do embrião, detalhado em todos os seus aspectos. Procedemos alguns textos como esse que descreve a evolução do ser humano partindo das essências para sangue e sopros.
Os três primeiros fu extraordinários tem uma relação particular com os Rins, e os Rins estão relacionados com a origem e com o sopro original, e, de acordo com outros textos, com mingmen, a porta do destino. Podemos então estabelecer uma relação entre fu extraordinários e os inícios da vida num ser. Não é por acaso se temos quatro dos seis fu extraordinários presentes na construção do corpo pelas essências, sem dúvida num estado embrionário. Os dois fu extraordinários restantes, a Vesícula Biliar e o Útero, devem ser tomados num outro nível, o da diferenciação entre macho e fêmea; nós retornaremos a eles mais tarde, quando os trataremos em detalhes.

Obviamente, o movimento que forma a vida começa no mais interno do corpo (medulas) e termina na parte mais externa (pele e pelos). A partir dos ossos que fazem o esqueleto (a estrutura), existe uma progressão para as circulações vitais, os mai, pelas quais a vida é nutrida e mantida. Em seguida a musculatura aparece com sua força, sua tensão e a possibilidade de movimento que ela permite, em seguida as carnes que são mais exteriores no sentido que elas dão a forma ao corpo. Finalmente chega-se nas camadas da pele e aos pelos. Os fu extraordinários estão nas zonas mais internas, pois eles são associados às essências.
O poder das essências é visível em tudo, manifestado igualmente como sangue e sopros. Pode parecer estranho chamar as circulações vitais um fu, mas essas circulações vitais, essas mai são de fato nada menos que a circulação das essências sob a forma de sangue animado pelos sopros. Os músculos precisam também ser nutridos e irrigados por todos os líquidos plenos de essências como também pelo sangue e sopros afim de poder efetuar seus trabalhos. Igualmente, no nível das carnes ou mesmo dos pelos e dos cabelos, o bom estado deles é a expressão do bom estado das essências e de sua boa circulação sob a forma, por exemplo, de um sangue abundante.
 Os caminhos das circulações vitais (mai dao 脈道) estabelecem as livres circulações pois doravante se trata das circulações de sangue e sopros próprios à criança e não mais aquelas dependentes da mãe. Assim, o recém-nascido começa a entrar em ressonância com seu ambiente cósmico, tendo saído da barriga de sua mãe. Todas as vísceras e meridianos que foram preparados para a gestação recebem então a informação que permite colocá-los em relação com o mundo exterior através das estações, dos sopros, etc.
Vísceras e meridianos começam a trabalhar antes do nascimento. No momento do nascimento, eles próprios se colocam em relação com o meio cósmico. Os meridianos e os fu extraordinários não param suas atividades no nascimento.

Claude Larre: Nós falamos da medida do tempo, mas o tempo não tem realmente nenhuma relação com maneira com a qual nós o medimos. O tempo, são diferenças de movimento. Existe um movimento, alguma coisa de desenvolve, alguma coisa muda tudo isso é uma questão de diferenciação de sopros.

SUWEN Capítulo 76

Elisabeth Rochat: O Suwen 76 fala também das essências e das formas tomadas graças a elas.

  “Cinco zang e seis fu, Vesícula Biliar, Estômago, os dois Intestinos, Baço, Útero (bao ),
     Vesícula, cérebro e medulas, secreções nasais e saliva, lágrimas de tristeza e de
     sofrimento, é através disso que circulam as águas e que um homem está  em vida.”

O interesse dessa citação é de mostrar que os Rins são igualmente as guardiãs, responsáveis pela tesourização das essências e da água. O trabalho do estômago é igualmente necessário: é pela assimilação e a digestão que todos esses líquidos e essa água podem ser renovados. O Baço participa à assimilação e à distribuição desses líquidos. E os dois Intestinos mantêm uma relação especial com os fluídos corporais (jin ye 津液), como o faz igualmente a Bexiga. O texto menciona em seguida o cérebro e a medula, assim como o muco, o escarro e as lágrimas. Todos esses líquidos, normais ou patológicos, são o sinal da presença de essências no nível dos orifícios superiores - nariz, boca e olhos. Temos assim também toda uma circulação completa de água e de líquidos permitindo a vida.

Um comentador diz que as águas essências são como as fontes, mas elas devem se elevar e entrar em comunicação livre com o Céu. Dito de outra forma, nossas essências são, por definição, regidas por um movimento de concentrações e são guardadas no interior do corpo. Mas uma parte de nosso corpo precisa das essências para ficar viva e então elas devem ser igualmente submissas à um movimento de subida e de difusão. E talvez os fu extraordinários participem a esse movimento. Efetivamente, medula e os ossos se encontram presentes em todo o corpo e os mai asseguram a circulação de sangue e de sopros em todos os lugares.
O cérebro, que está no topo do corpo, representa a conjunção das essências e dos sopros no nível mais puro. Essa elevação e circulação, difusão das essências é um tipo de movimento secundário para elas, depois da condensação, e é talvez por isso que temos seis fu extraordinários. São fu porque eles vão distribuir alguma coisa num conjunto de relações, mas eles têm, contudo, um aspecto zang porque são sobretudo guardiães das essências.

* Trecho da apostila “ Os Fu Extraordinários “ – Primeira Parte – 
Elisabeth Rochat de la Vallée et Claude Larre
Publicação da E.E.A



Tradução: Emilia Firmino

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