Elisabeth Rochat de la Vallée
O mundo antigo chinês percebia a vida como a interação constante
de sopros diferentes, opostos, mas complementares, o yin yang. As múltiplas
variações e transformações que resultam dessas trocas se organizam segundo
ritmos e ciclos. É onde o espírito humano pode discernir modelos para a conduta
da vida,a organização das atividades, a cultura de si mesmo; podendo assim
atingir uma realização interior que coloca seu coração no compasso do coração
do universo, o fazendo participar à harmonia do mundo.
Uma das maneiras de apreender uma civilização é de observar como
ela reflete sobre ela mesma levando em conta sua origem e,a partir desse
ângulo, sobre a origem do mundo e do homem.
Habitualmente existem várias formas para expressar a visão das
origens: mitos, contos e legendas, religião e teologia, ciência, pensamento,
filosofia.
Nosso objetivo aqui não é de enumerar essas diversas abordagens no
mundo chinês, nem mesmo de considerar uma delas ao longo de sua história.
Vamos ver como os pensadores chineses mais ou menos contemporâneos da idade de
ouro da Grécia e do período helenista viam o universo e tentavam através dele
penetrar a natureza. Isso os levou a reflexões resultando em conhecimentos que
eles poderiam certamente classificar como cientificas. Isso os levava à um
conhecimento da vida da vida que permitisse ao homem não somente de se situar
no universo, assim como de encontrar nele referências descobrindo o sentido e a
maneira de se conduzir para progredir no sentido da vida. No mesmo movimento,
eles cultivavam suas vidas e a do universo expressa pelo e no conjunto de seres
que o povoam.
Considerando os textos clássicos chineses, o primeiro aspecto que
chama a atenção é a referência constante à unidade,à relação sempre necessária
ao Um, a presença do indizível.
Tudo o que existe, quer dizer, todos os seres, manifesta o que não
existe, o que não é nada, nada em particular, que se possa definir, nada
palpável, normalizável.
Entretanto nós não nos referimos assim ao “ser “e no “não ser” da
filosofia ocidental.
O pensamento chinês que se elabora nos séculos que precedem a era
cristã, coloca no fundamento de todas as existências particulares, de todos os
seres, o que não é isso, nem aquilo, nada disso e nada daquilo; o que não é
nada e o que sem ele nada existe. Pouco importa que chamemos esse Nada, Tao
(Via), Um ou grande Um, Vazio ou grande vazio, etc.
No seio do Nada que é tudo – podemos dizer que potencialmente, mas
onde nada existe ainda de maneira distinta e distintiva, alguma coisa se
movimenta como um sopro imperceptível e vago, um movimento aparece, como uma
palpitação, um ritmo.
Podemos ver aí uma alternância de expansão e de contração, como os
batimentos do coração. Podemos identificar uma alternância de movimento e de
repouso, como toda vida se repousa para em seguida se acordar e se ativar ao
longo dos dias e das noites.
Podemos nomear yang a expansão, o movimento, a atividade. E yin a
contração, o repouso.
Mas o que existe não é nem um nem outro. O yin não pode ser ou
existir sem o yang, e vice-versa. A expansão não tem sentido que pela
contração. A ideia de expansão nem pode existir sem a contração, ou o repouso
sem o movimento, e inversamente.
Assim, desde a primeira manifestação da existência, o pensamento
chinês coloca não os dois como dualidade, oposição,mas o casal emergindo junto
do Um. O que existe, o que compõe o universo onde estamos, são os simples
produtos da relação do casal.
Falamos de casal quando um não pode nem mesmo começar a existir
sem o outro, não pode continuar a existir sem o outro,nunca e em nenhum lugar.
Entretanto cada membro do casal conserva sua especificidade, sua polaridade,
seu modo de ação própria e suas qualidades particulares.
A manifestação primeira e depois dela, toda manifestação não é nem
a expansão, nem a contração, mas a alternância delas e o ritmo dessa
alternância.
O que funda o yin yang não é uma oposição que levaria a uma
separação, uma cisão e finalmente à uma confrontação e uma luta,como podemos
ver por exemplo em certos mitos da Grécia antiga. É ao contrario dois
aspectos de uma mesma realidade, da realidade (o Um), diferentes, mas
absolutamente complementares e em uma permanente interdependência.
Nem o yin nem o yang não são o “primeiro». O que emerge é um ritmo
– ou sopro- que para existir precisa dessas duas modalidades chamadas yin e
yang. É assim que o yin e yang são sempre fundamentalmente compreendidos.
Todas as variações desse ritmo são possíveis. O ritmo não é uma
repetição invariável da mesma cadencia; ele está a o lado da vida que sempre
recomeça, sendo sempre única em suas expressões. O ritmo implica uma infinidade
de transformações e de relações, de mudanças incessantes. Elas são observáveis
em tudo, por exemplo na natureza, a constante variação da duração do dia e da
noite, a alternância das estações, no homem, as pulsações do coração e dos
pulsos, seus ciclos biológicos.
Se o movimento, o yang, domina muito fortemente ou durante muito
tempo, terá agitação, aceleração, irregularidade. Se o repouso, o yin, domina
exageradamente, terá desaceleração, parada, irregularidade. Certas variações
fazem parte da expressão da vida, da forma pela qual a vida procede para
evoluir e continuar. Outras saem desse quadro e se tornam prejudiciais à vida.
Podemos ver bem com os batimentos do coração. É normal que ele bata
menos rápido quando se dorme, ou mais rápido quando uma “emoção” aumenta em nós
o movimento dos sopros. Mas se ele se acelera ou desacelera muito, é a doença e
a morte.
A consideração do momento é fundamental. O tempo não aniquila os
seres; ele lhes dá a vida e a morte e, através delas, o sentido da vida sempre
renovado. O tempo é visto como uma sucessão de momentos qualificados, quer dizer
que cada momento implica uma relação yin yang particular com suas referências
especificas para constituir e manter seu equilíbrio e o equilíbrio de tudo o
que se encontra nesse momento especifico. Existem momentos de alegria e
momentos de tristeza como existe a primavera ou o verão depois o outono;
existem os nascimentos, os casamentos e os funerais.
Se trata de estar na estação, quer dizer, na sua idade, assim como
nos múltiplos ciclos que compõem uma vida particular: ciclos biológicos como o
da fecundidade ou do sono, ciclos familiares e sociais, desenvolvimento de
situações e de acontecimentos que o meio ambiente cria em torno de si, etc. Se
trata então de seguir as estações da natureza nas suas diversas formas de ser e
de agir. É preciso que as variações do ritmo em um ser particular
sigam as da ordem da vida observável na natureza e que estejam em harmonia com
elas, sendo sempre a expressão única de uma vida particular.
Na natureza, o outono vem sempre depois do verão e a primavera
depois do inverno. O inverno nunca é tão frio (yin) ou se prolonga por tanto
tempo levando ao desaparecimento de todas as vidas. Existem limites que a ordem
natural não ultrapassa pois se refere à preservação da vida e não se pode ir
contra ela. Assim uma emoção ou um desejo contido em justos limites é normal;
mais incontrolado, excessivo, destrói a vida do indivíduo.
Muito yang não favorece mais energia, mas rompe o equilíbrio e a
harmonia e leva à morte. Muito yin não dá mais tranquilidade, mas um marasmo
que rompe o equilíbrio e leva à morte. O que fornece uma verdadeira força
vital, o que nutre e mantem a força da vida em um ser, é o equilíbrio entre os
dois aspectos. A harmonia é fusão, compenetração, unidade reencontrada.
Assim as variações estão inscritas desde a origem do mundo e do
casal; podemos chamá-las transformações, mutações, mudanças.... Assim aparecem
os seres e tudo o que existe. Variações e transformações estando inscritas na
origem de cada ser, coisa ou fenômeno, cada um é uma interação yin yang específica
que lhe define e que evolui ao longo do tempo, fazendo acontecer e tornando
sua vida segundo os ritmos e o equilíbrio desse yin yang.
O homem possui algo de particular: dotado de um Coração, quer
dizer, de um espirito, de uma consciência, ele é responsável pela qual a vida
se faz, pois, ele é responsável pelo discernimento que o guia em sua conduta.
Não se trata unicamente de uma realização pessoal, pois uma
dimensão cósmica está inscrita em todo destino humano.Uma vida cada vez mais em
harmonia com a ordem natural participa à harmonia do cosmos; senão ela a
diminui e pode até mesmo destruí-la.
Tudo se faz igualmente segundo o espaço e o tempo. Nada existe
senão em um lugar e um momento. Lugares e momentos são qualificados também pelo
yin yang e determinam as variações naturais de tudo o que existe.
O que não é ligado à um lugar e um momento –os dois mudando
perpetuamente, sobretudo o tempo – não existe,não é nada , é Nada.
Cada ser se apresenta como uma massa de sopros yin yang, em uma
composição particular, onde as palpitações ou as modalidades de troca e de
relação variam em função do lugar e do momento.
O conjunto de seres que povoam o universo: massas de sopros
palpitando e mudando reagem entre eles pois são a expressão da mesma realidade
original, Uma. Do mesmo sopro original. A realidade dos seres é interação,
cruzamentos incessantes de estímulos e de respostas, cada um sendo modificado
no processo.
Vemos então que o casal yin yang, expressão do advento do ser e da vida,
leva à visão de um universo em constantes mudanças e transformação. No
pensamento chinês, não é possível separar a vida, o ser vivo, todo ser vivo,
das transformações. O que não é transformado não pertence ao mundo dos seres. E
o que não é um ser, é o Nada.
As transformações podem aparecer como um balé vertiginoso.
Entretanto, o espirito humano pode discernir nele os modelos nas relações e
interações, as formas de proceder nos estágios da evolução. O yin yang vai
ainda servir para isso, pois a alternância e a complementaridade, a
compenetração são os grandes modelos.
Poderíamos precisar os movimentos dos sopros enriquecendo a
análise pelo yin yang da dos Cinco elementos (ou Cinco agentes). Encontraríamos
múltiplas aplicações nos diferentes domínios do saber e da atividade humana.
Uma grande rede de relações e de correspondências explica o mundo;
o espirito humano discerne aí os modelos que guiam as atividades. Mas o sentido
ultimo da realidade retorna sempre à sua raiz, ao que não é possível reduzir à
uma expressão particular, ou seja a Via viva, realidade além dos seres e,
portanto, presente em cada um e entre todos.
Retornando à origem ou ao movimento, à constância do fluxo.
Ao seio do que os textos chamam normalmente uma mistura onde não
se pode discernir nada, um caos não nomeável, falta de palavras para falar ao
que escapa ao conhecimento intelectual e sensorial, à imaginação e ao
pensamento. O ritmo primeiro faz aparecer o céu e a terra ou, para ser exata, o
céu-terra, o universo que se forma da relação entre o céu e a terra.
O que se estende, que vai em extensão, que sobe como um vapor leve
e então representa o aspecto yang do sopro, forma o Céu, feito de um movimento
incessante visível nas nuvens, jamais imóveis, jamais com um a forma fixa,
assim como na sucessão das estações, o desenrolar interruptor do tempo. O
redondo – ou o círculo, a roda – é seu melhor símbolo.
O que se concentra, se cristaliza em uma forma que mesmo mutante
não é definida, como um corpo, nosso corpo, representa o aspecto yin do sopro,
forma a Terra e seus espaços, constitui lugares estáveis, faz aparecer as
substancias que as transformações guardam nos processos de vida. O quadrado, o
espaço delimitado é o seu melhor símbolo.
Enquanto casal, como para o yin yang, céu e terra não podem ser um
sem o outro. Toda forma de vida, tudo o que existe e tudo o que acontece,
aparece na confluência do que vem do céu e do que vem da terra. Nada existe que
como encontro do céu e da terra. Tudo o que existe é um nó de sopros yin yang,
frutos das trocas entre céu e terra. O espaço entre céu e terra, o céu terra, é
o universo com todos suas miríades de seres.
O que implica que céu e terra não se opõem, não se viram as
costas, mas são inteiramente voltados um para o outro, mesmo que eles sejam
formados pelos dois aspectos contrastados do sopro.
Mesmo que seja a maior e completa expressão do yang, o céu contém
suficientemente yin, representado por exemplo pela lua; e inversamente pela
terra. Se a expansão fosse infinita, não existiria nem céu nem terra. De que
essa expansão se nutre? E a contração.
A água fornece uma metáfora exemplar: vaporizada, ela se eleva
formando as nuvens do céu, condensada, ela se abaixa e fertiliza a terra. Seu
ciclo figura a manutenção da vida e sua perenidade através das mutações. A água
não se perde mudando de forma ou de estado; ela é como a vida.
Entretanto existe uma diferença entre o casal yin yang e o casal
céu e terra. Não é que um, o céu terra, tenha mais visibilidade, pois de fato o
céu visível é manifestação do poder do céu além do visível. Igualmente para a
terra.
A diferença é que existe no casal céu terra uma hierarquia que não
existe no casal yin yang. Yin e yang se alternam. O céu domina sempre a terra;
ele está sempre acima, superior. É ele que ordena, dá a ordem, em
todos os sentidos do termo: ele é a ordem na qual procede a vida como ele dá
ordem - ou mandato – à cada um. Jamais céu e terra não se alternam ou mudam
suas posições. A harmonia deles está na supremacia do céu e a obediência
imediata da terra. Senão tudo fica às avessas.
O céu é a ordem natural: além das nuvens, da chuva e o vento, além
da alternância do dia e da noite, é a maneira como os sopros se sucedem e
interagem, fazendo aparecer todas as variações diárias e sazonais, a
alternância regular dos dias e das noites e todos os ciclos da natureza. Além
dessa ordem natural, existe o poder de vida que se expressa nessa ordem assim
como na fonte dessa força. É isso que constitui o céu além do céu. O
homem percebe essa ordem e essa força no exterior dele e nele mesmo; ele
discerne os modelos das atividades e as coloca em conformidade com sua conduta
segundo uma moral da qual o fundamento é de se integrar ao movimento natural da
vida. É o céu no coração de todo homem. Procedendo assim, o homem
desenvolve da melhor forma a força vital nele e os efeitos que ele provoca nos
outros; dizemos que ele cumpre seu destino, aquilo ao qual o céu (ou natureza)
o destina.
A terra recebe o que lhe vem do céu e lhe obedece. Segundo as
composições particulares de yin yang que o céu sopra sobre ela e insufla nela,
a terra cristaliza as formas, faz aparecer seres vivos particulares que possuem
seus destinos celestes a cumprir. O céu dá forma à vida segundo as diretivas do
céu. Isso se encontra em cada um. Um humano deve sua vida a seus pais, à suas
linhas familiares, à condensação, cristalização que permite o início do
embrião, e ele é condicionado por tudo isso. Mas ele deve ainda mais sua vida
ao sopro celeste que sozinho é fecundo, ao Céu que lhe dá sua natureza primeira
da qual a realização é sua realização e sua participação à vida cósmica.
As quatro estações veem do céu; a visibilidade e efetuação delas é
na terra. Vemos os efeitos do sopro da primavera, do verão, do outono e do
inverno na vegetação, nos animais assim como no corpo, no coração e na conduta
dos homens.
A harmonia cósmica é o jogo dos sopros yin yang entre céu e terra,
na relação Céu Terra. Ela é natural às estações e aos fenômenos da natureza,
aos minerais, aos vegetais e aos animais.
O homem ocupa um lugar particular na sua responsabilidade de participar
à essa harmonia e de fazê-la bem ou então, de diminuí-la, destruí-la. Pois o
homem é dotado de uma capacidade de conhecer, memorizar, associar os
conhecimentos e experiências; ele beneficia de um discernimento que podemos
chamar, segundo as sensibilidades, sentido moral, inteligência espiritual,
consciência, iluminação...
Esse discernimento não é automático. Ele é sempre mais cego que
esclarecido. Segundo as Escolas de pensamento, tem-se pontos de vista
diferentes, mesmo divergentes, sobre o que é exatamente esse discernimento e
sobre os meios de cultivá-lo. Entretanto encontramos sempre o controle das
paixões e dos desejos dos quais os transbordamentos levam a distanciar-se.
Limitar as paixões, não é se reprimir, é continuar no sentido da vida, como
canalizar a água permite fazê-la servir à vida e não à morte que ela provoca
quando transborda inundando tudo. É impedir as emoções, pensamentos e
ambições de perturbarem a ordem das trocas e dos ritmos yin yang e céu terra em
sua vida pessoal.
O homem cumpre essa harmonia, indissociavelmente, em seu corpo e
em seu espirito. Seu corpo é terra nele e seu espirito, o céu. O espirito não
comanda o corpo que o compenetrando nos mínimos cantos, como o sangue que vem
do coração /mental/espirito penetra a mínima parcela do corpo. É assim
que abordamos no homem as almas espirituais (Hun) e as almas corporais (Po)
pelas quais a união faz a vida e a separação, a morte. Nesse ponto também uma
não existe sem a outra. O corpo não é completo e perfeito se é pelo espirito.
Mas o espirito não é completo e perfeito que pelo e com o corpo.
O espirito é às vezes dado, como potencial como o que não é ou não
é ainda, e como realização a ser completada, graças à capacidade de
conhecimento e ao discernimento, à consciência da qual o ser humano é dotado
pela natureza sendo sua parte celestial por excelência.
Aqui reside a grandeza do homem. Ele pertence ao cosmos. Sua vida
tem os mesmos sopros, os mesmos modelos e as mesmas leis que a vida cósmica.
Ele encontra sua harmonia integrando esses modelos em sua conduta e no que dita
sua conduta.
Ele é assim triplo com o Céu e a Terra; ele é uma das três forças
ativas do universo participando plenamente do jogo dos sopros no universo, para
o melhor e para o pior...
Mas se ele não cultiva a harmonia dos sopros yin yang, o
equilíbrio das trocas e a retidão dos ritmos entre Céu e Terra, se ele não
constrói sua realidade interna, seu espirito, como sua capacidade de participar
plenamente do processo vital, pessoal e cósmico, ele não cumpre aquilo ao qual
está destinado. Não sendo fiel à sua natureza, ele não se torna digno do nome
de humano.
Tradução Emilia Firmino