sábado, 30 de maio de 2020

Abordagem do Confucionismo


ABORDAGEM DA SABEDORIA CONFUCIANA
Elisabeth Rochat de la Vallée


Tradução: Mariana C. T. Scarpa


            Todos, mesmo aqueles que ignoram tudo sobre a China, conhecem o nome de Confúcio, forma latinizada do chinês Kong zi, Mestre Kong. É apenas uma questão de justiça, pois a escola que ele fundou há mais de 2500 anos é sem dúvida aquela que influenciou por um período mais longo e mais profundo a história da humanidade.

I. REFERÊNCIAS HISTÓRICAS

a. Situação histórica do nascimento do Confucionismo: a fundação de uma escola.

            O Confucionismo é profundamente marcado pelo contexto histórico do país no qual ele aparece, ou seja, a China. Na metade do século VI antes de Jesus Cristo, momento em que nasce Confúcio (551-479), a China é estruturada por um feudalismo que organiza e comanda a sociedade inteira em suas atividades políticas e morais. Em sua base, encontramos uma visão do universo como uma ordem cósmica, modelo da ordem social; o homem participa desta harmonia universal pela sua boa conduta e o imperador é o símbolo e a garantia da continuidade da ordem cósmica na sociedade. Entretanto, o século VI é também um período em que assistimos a degradação da antiga ordem: o imperador não tem senão um poder teórico e os grandes vassalos exercem o poder real, no meio de lutas sem tréguas; a moral se desmorona e o cinismo substitui o temor religioso; a desordem ameaça por toda parte ainda que os contatos com as populações “bárbaras”, quer dizer, os não chineses, abram novas perspectivas tanto administrativas quanto técnicas. A inquietude cresce face a ambição sem escrúpulos dos grandes senhores, em um mundo em que os antigos costumes e as regras ancestrais perderam seu fundamento e sua eficácia.
            Confúcio vai se sentir impelido de uma missão: reencontrar, refundar a antiga ordem com seu sentido moral e religioso; reencontrar a Via perdida dos Sábios Reis da antiguidade. Este sentimento que o anima, é certo que ele vem do “Céu”, este poder supremo, impessoal, que é a ordem sagrada do universo, a garantia da continuidade da vida, o natural. O Céu está presente em tudo: no desenvolvimento regular das estações assim como no coração de cada ser, dando sua natureza própria e a razão de realizá-la; no homem, ele é isto que fala no mais profundo de si para indicar a via a seguir a fim de se conformar ao Natural, que é a vontade do Céu.
            Confúcio vai tentar restaurar uma base à moral e à ordem social pela educação dos homens. Para isso, ele funda uma escola, a primeira deste gênero na China, em que se ensinará a todos aqueles que querem – e não exclusivamente aos filhos dos príncipes – a fim de incitá-los a um aperfeiçoamento individual, a descoberta de uma ética a qual permite reformar as condutas sociais e   conduzir a um bom governo.

b. Extensão do Confucionismo, a escola dos Letrados.

             A vida política, moral e intelectual da China, mas também a do mundo sino-asiático (Japão, Coreia, Vietnã) foi marcada e mesmo dirigida por cerca de 25 séculos pelo Confucionismo ou “escola dos letrados” (Rujia 儒家). A influência de Confúcio foi constante e essencial, ainda que Confúcio não tenha escrito nada e que seus Diálogos com seus discípulos (Lunyu) foram, sem dúvida, redigidos bem depois da morte do Mestre; mas as tendências variadas e os desenvolvimentos diferentes existentes desde a antiguidade. No século IV, Mêncio (382-289) sistematiza a doutrina, fazendo aparecer novas noções; no século III, Xunzi a desenvolve de acordo com outras perspectivas. As reflexões e elementos de outras escolas de pensamento (como o legalismo ou o taoismo) são igualmente integrados ao confucionismo, de tal maneira que, quando a dinastia Han (206 antes de J. C. - 220 depois de J.C.) unifica o Império e eleva o confucionismo à categoria de doutrina de Estado, ele já não é mais o simples pensamento de Confúcio. O Confucionismo continua sua evolução ao longo dos séculos, marcado por tendências à esclerose e por renovações nas quais a mais conhecida é o movimento sincrético feito sob a dinastia Song (960-1127) chamado neoconfucionismo. Entretanto, o confucionismo permanece sempre vivo pela ética que ele sustenta e na consciência dos indivíduos, tanto quanto pelos problemas que ele é o único a realmente colocá-los no mundo chinês e que são aqueles que tocam ao homem enquanto ser social e político. As respostas do confucionismo (ou dos “confucionismos”?) são algumas vezes radicalmente diferentes sobre essas questões.

c. Limites da apresentação
            Não pretendemos aqui fazer uma exposição sobre o histórico do confucionismo ou mesmo abordar os diferentes aspectos que ele apresenta segundo seus autores e as épocas. Nós nos contentaremos a uma abordagem do confucionismo original, fundada essencialmente sobre os Diálogos de Confúcio com seus discípulos, ou Lunyu.

II. ALGUNS GRANDES TEMAS DO CONFUCIONISMO

a. O sentido do humano, a virtude da humanidade ou da benevolência (ren)

            O caractere chinês que designa esta noção mostra um homem e o número dois: dois seres humanos estão em presença. A maneira como um homem se conduz face a outro, seguindo o mais profundo da sua natureza de homem, é a humanidade ou o sentido de humano. Não se trata de uma benevolência vaga, mas de uma abertura ao contato do outro, fundada sobre o seu próprio enraizamento na sua realidade humana. É uma disposição interior caracterizada pelo desinteresse e complacência, a reciprocidade e a consciência disto que desejamos enquanto homem. O sentido do humano é assim a plena realização, em cada ser, de sua natureza própria do homem: é, portanto, sua participação na ordem natural, na virtude do Céu pelo aperfeiçoamento de todas as qualidades humanas. Não podemos, então, definir precisamente o sentido do humano, pois cada um pode realizá-lo a sua própria maneira em suas condutas e relações familiares e sociais; mas os efeitos benéficos são perceptíveis nas modificações com os outros que são atraídos e bonificados por aquele que realiza sua humanidade. É, portanto, a virtude fundamental igualmente para os governantes, pois o poder político não pode ter outra base se ele quer verdadeiramente se estabelecer como uma preocupação exata pelos outros.

            “Praticar o ren, é começar por si mesmo; querer estabelecer os outros tanto quanto queremos estabelecer a si mesmo, e desejar o êxito deles tanto quanto desejamos o próprio. Buscar em si a ideia disto que você pode fazer pelos outros – eis o que te colocará sobre a via do ren” (Lunyu, VI, 28)[i].

            “O ren, é o homem ele mesmo (é a virtude pela qual ele é verdadeiramente homem). Seu Dao (o caminho que deve seguir o homem), é ter a relação justa” (Livro do Ritos, Liji, XXIX, 15).

            “O ren, é amar os homens” (Lunyu, XII, 22).

b. As grandes virtudes confucianas, expressões de uma conduta digna de um homem sábio

            O sentido dos deveres ou o Justo (yi)

            É ser capaz da atitude ou de ação justas, que convém a cada pessoa e a cada situação dada. É como a manifestação, no detalhe das aplicações, do sentido do humano que esclarece o juízo e a conduta. O sentido dos deveres é a capacidade para saber o que é equitativo e criterioso de se fazer em todas as circunstâncias. O homem é o único ser que seja capaz de uma tal consciência, de um tal conhecimento. Novamente, sem definição precisa, sem critérios de conduta, nem de dogmas; mas uma percepção exata e uma pertinência do juízo, que vem disto que, fundado na realidade de seu ser, um homem percebe em si e conhece o que ele deve fazer. Deste modo, isto é o fruto da educação pessoal, de um incessante trabalho sobre si.

            “Nos afazeres do mundo, o homem de bem não tem uma atitude rígida de recusa ou de aceitação. O Justo é sua regra” (Lunyu, IV, 10).

            “A água e o fogo têm seus sopros, mas não têm a vida. As ervas e as árvores têm a vida, mas não têm a percepção. Os pássaros e os quadrupedes têm a percepção, mas não têm (a apreciação) disto que é justo. O homem tem (animação dos) sopros, nascimento (no mundo), percepção (dos seres) e ele possui além disso (a apreciação) do que é justo. É porque ele é isto que há de mais precioso no universo” (Xunzi, capítulo 9, volume 5).

            A lealdade (zhong )
            Designada em chinês por um caractere composto pelo coração e pelo centro/meio, a lealdade é a retidão do coração, a retitude e a honestidade no exame de si mesmo como no respeito aos outros.

            A reciprocidade (shu),
            A reciprocidade consiste em tratar os outros não somente como eles nos tratam, mas como nós desejaríamos que eles nos tratassem. É a aplicação social da lealdade ou retitude do coração. Se podemos falar de um tipo de altruísmo, não se trata, entretanto, de conferir a este termo seu sentido cristão. De fato, a reciprocidade não é igualitária, pois tratamos dos seres em função de sua posição na hierarquia social, em função do grau de relação que temos com eles. Não devemos tratar da mesma maneira um pai ou um soberano ou qualquer estrangeiro, pois esta confusão levaria a uma desordem social e uma desestabilização dos valores que estruturam a nação.

            A fidelidade (xin ),
            Composto pelo homem e a fala, o caractere mostra a fidelidade à palavra dada, que torna um homem digno de confiança. A atitude leal e sincera daquele que é fiel ao dever gera a confiança de seus superiores e a fidelidade de seus inferiores.

            A autenticidade (cheng )
            Quando um homem adere totalmente a isto que lhe impõem os sentidos do humano e o sentido dos deveres assim como todas as outras expressões da virtude, ele é profundamente autêntico. Seus pensamentos e seus sentimentos são justos e sua conduta é naturalmente perfeita, pois ele realiza em si sua natureza de homem, sua parte celeste.
            Mencionemos ainda duas qualidades sem as quais as responsabilidades políticas não seriam assumidas: o discernimento ou sabedoria (zhi) e a coragem (yong). Sem discernimento, não há juízo esclarecido e sem coragem bem equilibrada não há ação eficaz. A coragem não deve ser audácia inconsciente, mas ela pode ir até ao sacrifício de sua vida.

c. A piedade filial xiao : respeito aos ancestrais e fundamento da ordem social

            A sociedade confuciana é um lugar de relações, pois o sentido do humano é principalmente o sentido das relações de homem a homem. Cada homem é preso em um tecido de relações com todos aqueles que estão em seu contato. Estas relações são bem definidas e codificadas, pois elas são o fundamento da ordem social, o Estado sendo percebido como uma grande família. Elas estão tradicionalmente presentes em cinco grupos que cobrem todas as circunstâncias da vida: relação entre pais e crianças, marido e mulher mais velhos e mais novos, soberano e ministro, amigo e amigo. Cada um sabe assim como se conduzir: como príncipe ou como ministro, como pai ou como filho ou como amigo, quer dizer, um irmão de um outro homem.
            A piedade filial, que representa o conjunto de deveres e de sentimentos que nós temos com nossos parentes e com seus ancestrais, vivos ou mortos, é a base das relações sociais e, portanto, um dos fundamentos da sociedade na perspectiva confuciana. Aquele que respeita seu pai, respeita também seu soberano. A estabilidade da hierarquia social e os modelos de conduta dos governos se encontram já na piedade filial.

            “Ser simplesmente bom filho ou bom irmão, é já participar do governo” (Lunyu, II, 21).

            “Raros são aqueles que, exemplares ao olhar de seus pais e de seus anciãos, tendem a ir contra seus superiores, e com a maior razão fomentar as rebeliões. O homem de bem trabalha pela raiz. É sobre as raízes bem ancoradas que a Via pode crescer e florescer. Piedade filial e respeito aos anciãos não são eles a raiz mesma do ren?” (Lunyu, I, 2).

d. A moral
            A moral deve ser uma atividade natural, espontânea; mas ela é também o fruto de uma reflexão permanente sobre os homens bem como um trabalho incessante sobre si. A moral de Confúcio é pessoal; cada homem toma consciência disto que ele é, [bem como disto] que implica ser um homem de responsabilidades individuais, familiares, sociais. Ele retifica, assim, cotidianamente sua conduta e seus pensamentos em função disto que ele compreende do homem e de seu enraizamento na ordem natural; isto que lhe permite de se conduzir cada vez mais justamente e cada vez mais naturalmente. A moral é uma prática ativa, fundada sobre o estudo e a reflexão sobre o homem. Ela é a base da educação como governo. O sábio confuciano que deseja manter o mundo em ordem e recolocar os homens na direção do “caminho certo”, começa sempre por se ajustar a si mesmo, por “ajustar os movimentos de seu coração” (início do Grande Estudo ou Daxue), trazer a calma nos seus pensamentos, equilibrar suas emoções. Mas a moral que se descobre pelo estudo e a reflexão não é uma invenção humana; ela é a redescoberta, em cada um por cada um, da ordem do mundo, da vontade do Céu, dos grandes movimentos cósmicos da vida. Um homem deve, pela sua conduta, se integrar perfeitamente ao universo e se engajar totalmente eticamente e cosmicamente falando. A moral e os Ritos lhe permitem [realizar isto]. É por isso que, idealmente, eles devem ser ao mesmo tempo muito estudados e completamente espontâneos. Confúcio, ele mesmo, não chegou a isso senão ao final de sua vida: “Aos quinze anos, eu resolvi aprender. Aos trinta anos, eu me firmei na Via. Aos quarenta anos, eu não sentia nenhuma dúvida. Aos cinquenta anos, eu conhecia os decretos do Céu. Aos sessenta anos, eu tinha um discernimento perfeito. Aos setenta anos, eu agia com toda a liberdade, sem, no entanto, transgredir nenhuma regra” (Lunyu, II, 4).

e. O engajamento socio-político
            A moral confuciana é um engajamento. O letrado confuciano é, por definição, ativo no mundo e no governo. Uma enorme responsabilidade é pesada sobre seus ombros: educar e governar a fim de manter a ordem social à imagem da ordem cósmica. As mesmas regras que ele aplica à moral individual, guiam sua atitude política. Ele governa como ele ensina: pelo exemplo e não pela força. O soberano não é digno de governar se ele não é capaz de se retificar e de tornar a si mesmo um exemplo, uma norma para todas as suas questões. Sua própria retidão ou potência moral força a administração e a submissão, justifica sua autoridade e leva à reunião [ou a adesão] de todos.

            “O soberano incarna a retidão? Ninguém precisa de suas ordens para que tudo ocorra bem. [Se] ele não a incarna? Ele multiplicaria as suas ordens que não seriam nunca obedecidas” (Lunyu, XIII, 6).

            “O homem formado pela retidão, qual dificuldade teria ele para governar? Quanto ao homem incapaz de retidão, como pretenderia ele retificar os outros? (Lunyu, XII, 13).

            “A virtude do homem de bem é forte como o vento, do homem ligeiramente fraco como a relva que, ao vento, se curva e abaixa” (Lunyu, XII, 19).

            “Governar à força de leis, manter a ordem sob pena de punição, o povo se contentará em cumprir, sem sentir a menor vergonha. Governar pela Virtude, harmonizar pelos ritos, o povo não somente conhece a vergonha, mas por ele mesmo tenderá em direção ao Bem” (Lunyu, II, 3).

            “Quem conhece a verdade pelo intelecto, mas falta o ren para a conservar, está destinado a perder. Quem a conhece pelo intelecto, a conserva pelo seu ren, mas falta seriedade para praticá-la, não será nunca respeitado pelo povo. Quem a conhece pelo intelecto, possui suficiente ren para conservá-la, seriedade o suficiente para praticá-la, mas não governa em função do ritual, não é ainda o soberano ideal” (Lunyu, XV, 32).

f. O lugar de estudo e do ensino

            O estudo e a educação são, para Confúcio, o meio mais certo de melhorar o homem, de trazê-lo a sua própria natureza e de fundar assim uma ordem social e um governo estáveis. O estudo implica a cultura de si, o exame de consciência de cada dia. Ele [o estudo] desenvolve o conhecimento exato das coisas e do mundo e vai, assim, esclarecer a conduta. Aquele que realizou a natureza das coisas e que sabe como elas funcionam, compreende como se conformar ao movimento natural, não somente perante as coisas, mas também em si mesmo. Ele sabe como governar.
            A educação não é uma “lavagem cerebral”, é trazer à compreensão a natureza das coisas, de modo a poder agir em cada circunstância. É por isso que o mestre a adapta a cada indivíduo.

            “Você pode, diga você, recitar de cor as 300 Odes? Mas imagine que, engajado em uma função, você não esteja à altura ou que, enviado em uma missão estrangeira, você não saiba responder por conta própria: do que servirá toda a literatura?” (Lunyu, XIII, 5).

            “Quando Zilu perguntou se um preceito deveria ser aplicado assim que aprendido, você disse a ele: Teu pai e teu irmão mais velho estão lá para te aconselhar, ao passo que para Ran Qiu, você simplesmente respondeu: Sim, imediatamente. Da minha parte, eu não sei mais no que pensar. Posso te perguntar as tuas razões? O Mestre: Ran Qiu não ousa avançar, assim eu quis incitá-lo a ir adiante. [Já] Zilu, ele tem um fervor por dois, assim eu quis freá-lo” (Lunyu, XI, 21).

g. Os Ritos

            Os ritos têm um papel central no ensino do Confúcio e na conduta do sábio, pois eles ajudam a controlar as emoções e a colocar cada um exatamente no seu lugar na família e na sociedade. Teoricamente, os Ritos reproduzem a ordem natural nas relações e condutas humanas. Eles são, portanto, fundamentais na educação que visa [garantir] que cada um tome consciência disto que se é, da missão na qual se é imbuído pelo Céu, e se dá os meios para realizá-la. Eles são todos muito fundamentais no governo, uma vez que eles canalizam as agressividades e desvios e guiam as relações políticas e sociais. Um soberano que governa de acordo com os Ritos, o espírito do ritual assegura o bom funcionamento do Estado, a fertilidade dos campos, a paz e a felicidade do povo. Ele assegura o equilíbrio social digno de um povo civilizado, que sabe se conduzir, em oposição aos bárbaros que ignoram a perfeição natural da vida de acordo com os Ritos.

III. HUMANISMO OU ESPIRITUALIDADE

a. O “Justo Meio”: não uma tibieza prudente, mas uma exigência extrema.

            O justo meio não é uma posição de tibieza prudente, de neutralidade tímida. É como enfatiza Anne Cheng, uma “exigência extrema”. O meio é a posição central que mantém tudo junto, em equilíbrio e em sinergia. Tudo retorna ao centro e dele tudo emana, é desta forma que o centro é o lugar do poder real. O sábio ocupa este mesmo lugar pela sua perfeição moral, pela sua compreensão global da ordem do mundo; isto que ele volta a dizer é que a Via do justo meio é a Via da maior exigência ética e prática. Não é um estado [permanente], é um dinamismo, um agir moral, que pode justificar um confucionista a se opor ao poder real, ainda que perca sua vida.

b. O Céu: uma ordem do mundo ou uma noção transcendente?

            A ideia que Confúcio se faz do Céu não é simplesmente a de uma potência que governa e regula a natureza, que inicia a vida em cada ser e lhe confere sua natureza própria; é também seu inverso, pois sou responsável pelo meu destino pessoal e a presença, no âmago de mim, que me permite compreender e abraçar o desenvolvimento natural da vida.

            “O Céu ele mesmo não fala? As quatro estações se sucedem, as cem criaturas proliferam: qual a necessidade que o Céu tem de falar?” (Lunyu, XVII, 19).
            “O Mestre suspira: Eu permaneço desconhecido para todos!
            Zigong: Como você explica isso?
            O Mestre: eu não acuso o Céu, eu não culpo os homens. Meu estudo é modesto, mas minha visão é elevada. Quem me conheceria, exceto o Céu?” (Lunyu, XIV, 37).
            O Céu, fundamento da ordem do mundo e da lei moral, é ele uma potência transcendente? Questão espinhosa, a qual é, entretanto, difícil de responder por um nome categórico.
            Ela leva a uma outra questão: o confucionismo é um simples humanismo ou um humanismo fundado sobre uma transcendência?
            “Quem não reconhece o Decreto Celeste não saberia ser um homem de bem. Quem não possui os ritos não saberia se afirmar. Quem não conhece o valor das palavras não saberia conhecer os homens” (Lunyu, XX, 3).
            O Mestre diz: “Minha Via procede de um pensamento único que religa o todo” (Lunyu, IV, 15).

            Concluindo, citamos um grande sinólogo, especialista no confucionismo:
            “O que caracteriza o confucionismo, é que, mais do que uma religião da transcendência, ele é de alguma maneira uma religião da sociedade na sua existência no mundo. Diferente do budismo e do cristianismo, [ambos] ligados a uma visão de um além da existência mundana e, com isso, pouco sensíveis na sua essência pelas transformações do mundo, o confucionismo ligado à sociedade como tal, ideologicamente não sobreviveu as grandes rupturas políticas que marcaram a modernização da Ásia. Ele não permaneceu objeto de interesse científico senão como um fenômeno historicamente desatualizado. Contudo, aqui nós assistimos a um movimento muito surpreendente: aquele da renascença, nos países da Ásia, de um interesse não mais simplesmente científico, mas social, pelos valores espirituais confucionistas” (Léon Vandermeersch, Confucionismo e sociedades asiáticas, l’Harmattan, 1991).



[i]Todas as citações do Lunyu foram retiradas dos Diálogos de Confúcio, traduzidas do chinês pela Anne Cheng, Edições Seuil, 1981.








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